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Independentes e paridade de gênero colocam constituinte chilena na vanguarda

Historiadora Joana Salém vê experiência inovadora da esquerda para o século 21 e, ao mesmo tempo, destaca que nunca uma Carta Magna foi redigida com peso igual entre homens e mulheres

Carlos Figueroa / wikimedia
Carlos Figueroa / wikimedia
"centro político da convenção constitucional pende para a esquerda"

São Paulo – A expressiva eleição dos chamados independentes de esquerda, candidatos desse espectro político sem vinculação partidária, e a paridade de gênero foram as grandes marcas das eleições no Chile que escolheram os 155 representantes do povo para redigir uma nova Constituição. A historiadora Joana Salém aponta os dois fenômenos como de vanguarda. Sobre o primeiro, diz ser “uma experiência muito inovadora do que a gente pode chamar de esquerda do século 21”. Já o segundo é inédito, pois “nenhuma Constituição da história mundial foi aprovada com 50% de homens de 50% de mulheres”.

Os independentes “são esquerdas mais diversas, plurais, multidimensionais, heterogênias e, principalmente, horizontais. A esquerda tem uma tradição do século 20 bastante vertical e centralizadora. E acho que no século 21 há uma grande mudança na formatação dos valores, voltados para a diversidade e horizontalidade”, acrescenta a doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo e professora da Faculdade Cásper Líbero.

Ao contrário do que possa transparecer, Joana Salém entende a ascensão dos independentes como um aprofundamento da politização da sociedade chilena, indo muito além dos partidos. “Não é antipolítica, é a expressão de uma importante politização da sociedade e uma importante vinculação das militâncias independentes a seus territórios, localidades, agendas ecológicas, feministas, da educação, saúde, contra o neoliberalismo. O Chile está mais politizado do que nunca.”

Autorrepresentação

Os independentes de esquerda estão distribuídos em diversas áreas, inclusive nas coalizões partidárias. Dentro do bloco Lista del Apruebo, por exemplo, há independentes internos, assim como dentro do Apruebo Dignidad. Além disso, existem as listas 100% independentes, formada exclusivamente por quem não se identificou com a configuração partidária de esquerda chilena. São principalmente duas: a Lista del Pueblo, formada por militantes de movimentos sociais, e a Lista dos Independentes por la Nueva Constitución, mais associada a base social ligada ao partido socialista.

“O fenômeno dos independentes está muito relacionado com uma força de autorrepresentação dos movimentos sociais”, diz a historiadora, citando alguns, como o Coordenadora Feminista 8M, ecológicos e estudantis. “E também lideranças comunitárias, mais locais e territoriais, que foram sendo criadas nos últimos anos, principalmente do estalido social para cá.” Com isso, “o centro político da convenção constitucional pende para a esquerda”.

Divisão de forças

Porém, essa tendência à esquerda não garante o controle total da redação da nova Carta Magna. Joana Salém explica que, apesar da grande derrota da direita, elegendo apenas um quarto das cadeiras e, portanto, sem o um terço necessário para bloquear mudanças, a esquerda inteira, partidária e independente, também não chegou aos dois terços para garantir sozinha a aprovação de suas ideias. Sendo assim, será preciso contar com o apoio do centro político. “A esquerda vai precisar dessa articulação.”


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Mesmo com essa pitada de incerteza a respeito do tamanho das mudanças, dá para dizer que a Constituição que nascerá pouco ou nada terá da atual. Afinal, a direita tradicional não conseguiu se garantir “em um cenário em que quem criou as regras do jogo foi a direita. Eles estavam seguros que iam conseguir um terço suficiente para bloquear o avanço das agendas contrárias ao neoliberalismo. A direita chilena está bastante derrotada e quando a direita é derrotada, o neoliberalismo latino-americano também sobre um golpe justamente porque foi ali que tudo começou.”

“Un violador en tu camino”

Outra marca na eleição da assembleia constituinte chilena é a paridade de gênero. Joana Salém lembra que a divisão igualitária das cadeiras está em um contexto da luta feminista imortalizada no estalido social pela performance criada pelo coletivo Las Tesis. “Foi provavelmente um dos acontecimentos mais impressionantes da mundialização da luta feminista a partir de um contexto local. Em mais de 20 países mulheres se organizaram para repetir a performance, que chama Un Violador en tu Camino, ou “Um Estuprador em seu Caminho”. A proposta da performance era a denúncia da violência masculina e estatal, identificando o Estado com o patriarcado. A ideia de que o Estado é um macho que viola os direitos das mulheres de uma forma muito particular e cruel.

Agora, a partir da paridade, abre-se a possibilidade para uma proposição estrutural do feminismo sobre a compreensão do Estado e da sociedade. “O feminismo não é mais visto como uma caixinha onde estão algumas lutas. É visto com uma perspectiva totalizante da nova sociedade que está por ser construída”, analisa. “Esse é um dado muito relevante que anima as feministas de diferentes partes da América Latina. E o Chile, nesse aspecto, inspira, configura uma certa vanguarda feminista. Agora vamos ver as consequências de uma constituição redatada com 50% de mulheres. Também veremos como isso vai alterar as configurações políticas, a compreensão do Estado, a compreensão da sociedade.”