Desigualdade

Com taxação de grandes fortunas, Argentina espera aumentar proteção social

Tributação, que atingirá menos de 1% da população, pode ajudar a contornar a crise agravada pela pandemia. Uma medida necessária no Brasil, lembra professor

Agência Télam
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"Se a Argentina conseguiu implantar um programa desse, com muito mais razão nós (brasileiros) teríamos que implantar também", compara professor da USP

São Paulo – Com a criação do imposto extraordinário sobre grandes fortunas, aprovado no último dia 4, a Argentina espera amenizar os efeitos econômicos agravados pela pandemia. A base do governo Alberto Fernández conseguiu 42 votos favoráveis no Senado, ante 26 votos contrários, ao projeto que espera arrecadar quase 308 bilhões de pesos, ou, cerca de U$ 4,5 bilhões, tributando apenas 0,02% da população. 

É um universo potencial de pelo menos 9.298 pessoas, segundo dados da Administração Federal de Receitas Públicas (Afip) citados pelo jornal Página 12. São as que declararam patrimônio superior a 200 milhões de pesos argentinos no último imposto de renda, o que seria equivalente a fortunas de cerca de R$ 13 milhões. A taxação será aplicada de forma progressiva, uma única vez, variando de 2% a 3,5% conforme o patrimônio.

De acordo com o professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) Paulo Feldmann, “esse novo imposto vai dar uma folga importantíssima para o governo ter gastos adicionais sem criar grandes problemas para as contas argentinas”. 

Contenção da crise

O montante arrecadado a partir da taxação de grandes fortunas já tem destino certo. O governo prevê repasse de ao menos 20% para a compra e produção de equipamentos e suprimentos médicos, devido à pandemia. Até sexta-feira (11), a Argentina registrava 40.431 mortes pela covid-19. 

O imposto também deve ajudar a financiar medidas de alívio econômico, além de fornecer crédito para pequenas e médias empresas. A pobreza também aumentou no país diante do agravamento da crise sanitária. Apesar dos esforços do governo Fernández, pelo menos 44,2% dos argentinos, cerca de 18 milhões de pessoas, estão em situação de pobreza, segundo relatório da Universidade Católica Argentina, divulgado pelo jornal El País. A proposta do governo é também destinar os recursos da tributação dos super-ricos ao combate à pobreza. 

Paralelo com o Brasil

Uma medida que também deveria ser tentada no Brasil, conforme destaca Feldmann. Em entrevista ao Jornal da USP, o professor compara a situação do país vizinho à economia brasileira. “No caso da Argentina, a situação (econômica) também é difícil, mas o governo tem essa facilidade agora. Vai poder usar recursos, não dele, mas da população mais rica, os bilionários do país, as famílias que têm condição de abrir mão de uma parte pequena em prol da mitigação da pobreza na Argentina. Foi uma medida muito inteligente que nós deveríamos tentar imitar aqui no Brasil”, afirma. 

Desde antes da pandemia, pelo menos 51,7 milhões de brasileiros, 24,7% da população, já estavam abaixo da linha da pobreza definida pelo Banco Mundial. Indicando que esse contingente, em 2019, sobrevivia com uma renda mensal de, no máximo, R$ 436 por pessoa do domicílio. O dado faz parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, divulgada em novembro. Como em todo mundo, o cenário piorou pelas medidas impostas para enfrentar a pandemia. O quadro só não foi pior devido ao auxílio emergencial. Com a extinção da medida a partir de janeiro, a vulnerabilidade deve aumentar, como prevê Feldmann.

Taxação pelo mundo

“Se a Argentina conseguiu implantar um programa desse (de taxação de grandes fortunas), com muito mais razão nós teríamos que implantar também”, adverte o professor. “Temos que deixar bem claro que o problema da pobreza no Brasil é muito pior. E nós temos uma das piores distribuições de renda do mundo. Isso é medido pelo índice Gini, em que estamos entre os 10 piores do mundo”, acrescenta o economista. 

Há pelo menos 11 países da Europa e América Latina que avançam para uma justiça tributária maior. É o caso, por exemplo, da Bolívia. Segundo informações do canal TeleSur, reproduzidas pelo site da revista Fórum, a Câmara dos Deputados aprovou em primeira votação projeto do governo de Luis Arce que cria o imposto sobre grandes fortunas. O Ministério das Finanças espera arrecadar mais de U$ 15 milhões por ano, que serão investidos para reativar a economia boliviana. 

A tributação aqui

Em campanha nacional, mais de 60 entidades do campo popular mostraram que a tributação dos super-ricos no Brasil poderia promover um aumento de quase R$ 300 bilhões aos cofres públicos. A campanha defende que a taxação é a “única proposta” capaz de enfrentar a crise econômica. Feldmann, ao Jornal da USP, concorda, mas lembra que as reformas tributárias que tramitam no Legislativo “não tratam da questão de taxar a riqueza”. 

O problema, aponta, é que “os pobres não estão representados no Congresso brasileiro”. “Na Argentina existem partidos de esquerda, os partidos justicialistas. Esses partidos, que elegeram inclusive o presidente Alberto Fernández, têm também uma maioria, apertada, mas uma maioria no Congresso argentino. O que permite a eles obter ou adotar medidas de proteção às populações mais pobres. Ou seja, os pobres estão representados”, comenta. No Brasil, prossegue o professor, “se você juntar todas as forças progressistas de esquerda hoje, que teriam essa preocupação com melhorar a situação dos mais pobres, você não conseguiria nem 20% dos deputados. E menos ainda no Senado”. 

“Essa é a grande diferença e algo lamentável no caso brasileiro” que faz com o debate sobre a tributação dos super-ricos não avance no Congresso. Esse grupo incluiria a fatia dos 0,3% mais ricos da população, cerca de 600 mil pessoas. 

Cenário exige medidas criativas

Feldmann acrescenta que a economia brasileira enfrenta um período também de queda e com peso da pressão inflacionária que sobrecarregará os mais pobres. Enquanto na Argentina a taxação dará uma folga ao governo, o Brasil terá dificuldades, uma vez que o governo não cria políticas para garantir os recursos necessários. 

“O governo precisará adotar medidas criativas e existe um arsenal de medidas positivas que podem ser adotadas. Sem o auxílio emergencial é mandatório que se consiga emprego para as pessoas. E se consegue emprego com obras de infraestrutura. Esse governo, até o momento, não se interessou por esse caminho”, contesta o professor da USP.

Redação: Clara Assunção. Edição: Vitor Nuzzi