30 anos de espera

Itália discute união civil gay e adoção por casais homossexuais

Polêmica, lei divide país e classe política, fortemente influenciada pela Igreja Católica; país é o único da Europa ocidental sem legislação sobre assunto

Flickr/redglow/CC

Projeto de lei não reconhece o matrimonio entre pessoas do mesmo sexo, mas legaliza a união civil

Opera Mundi – Demorou quase 30 anos para que um projeto de lei sobre a união civil gay conseguisse entrar em discussão no Senado italiano. Polêmica, divide profundamente o país e a classe política, influenciada pela Igreja Católica. Ela começou a ser discutida no dia 2 de fevereiro; teve a votação adiada hoje (24); e corre o risco de não ser aprovada ou ser aprovada pela metade.

Fundamentalmente, a lei Cirinnà – em referência à sua autora, Monica Cirinnà – prevê a união civil entre casais do mesmo sexo e a “stepchild adoption” (adoção do enteado), que dá a possibilidade a homossexuais de registrarem os filhos de seus parceiros na ausência do outro pai biológico. E é exatamente a questão da adoção que divide a base aliada e o próprio partido do governo.

Consciente do problema que deve enfrentar, o primeiro ministro Matteo Renzi, do Partido Democrático, que completa dois anos de governo, está vivendo um dilema crucial: votar a lei confiando na adesão do Movimento Cinco Estrelas – favorável 100% à união civil, mas com ressalvas à “stepchild adoption” e ao “canguru”, manobra política usada para eliminar, de uma só vez, uma grande quantidade de emendas ao projeto de lei – ou se aliar aos senadores conservadores de direita e pedir o voto de confiança no senado, excluindo da lei a adoção do enteado.

O primeiro projeto de lei de união civil foi apresentado em 1988 pela deputada socialista Alma Agata Cappiello, mas nunca chegou a ser discutido. Durante a vigência dos vários governos de centro-esquerda entre 1996 e 2001, outros projetos foram apresentados, mas também não chegaram à discussão. A única vez em que o Parlamento tentou pautar uma lei sobre o assunto foi durante o governo de Romano Prodi, em 2007. Por conta da pressão feita pela igreja católica, a proposta foi deixada de lado.

Em meio ao jogo político se encontram milhares de casais gays e de famílias homossexuais com filhos que não esperam outra coisa do governo italiano além da aprovação da lei. “O que está em jogo é a nossa vida e a vida de nossos filhos. Eles (políticos) não podem continuar brincando de fazer política, já passou o tempo de a Itália ter uma legislação que tutele nossos direitos”, afirma a italiana Silvia Petronici, 40.

Ela vive há cinco anos com a neozelandesa de origem maori Anna Sartori, 45. O casal mora numa velha casa que fica na pequena cidade medieval de Marostica. Ano passado, receberam uma proposta de um familiar de Anna que vive na Nova Zelândia e aceitaram adotar uma criança. Hoje, a pequena e sorridente Clara* tem nove meses. “A legislação (neozelandesa) consente este tipo de adoção. Para nós, é possível adotar o filho de um membro da mesma família que não tenha condições econômicas para cuidar dessa criança”, diz Anna.

“A nossa situação é tão complicada que nem a adoção foi reconhecida. Seguimos as indicações de nosso advogado e demos entrada nos documentos como se eu fosse tutora legal da nossa filha, com todos os direitos reconhecidos, mas a lei italiana não me reconhece como mãe adotiva”, diz Anna.

Já Silvia lembra que, caso algo um dia algo acontecesse com Anna, ela não teria nenhum direito de tutela da pequena Clara. “O serviço social contataria primeiro os avós de Clara, depois os tios, os parentes próximos e eu não seria levada em consideração. Por isso é mais que necessário que a ‘stepchild adoption’ seja aprovada”, diz.   Para elas, esse seria o primeiro passo em direção à aprovação de uma lei específica que autorizasse a adoção por casais homoafetivos.

Influência católica

A lei não reconhece o matrimonio entre pessoas do mesmo sexo, mas legaliza a união civil. O texto inclui uma equiparação de fato entre matrimônio e união civil, mas apenas esta ultima seria acessível aos homossexuais. “Essa lei não é perfeita, mas é um começo, foi a solução moderada que o país encontrou para tentar nos tutelar”, diz Giuseppe Sartori, presidente da Associação Circolo Tondelli LGBTI.

Talvez ainda seja muito progressista para o governo italiano adotar uma política específica que legalize o matrimônio gay. Para Sartori, a influência da Igreja na política italiana é um fator cultural enraizado, que acaba determinando a agenda política, principalmente, em temáticas delicadas como a união civil, o direito ao aborto e a legalização das drogas. Tanto é que o presidente da Conferência Episcopal Italiana (CEI), o cardeal Angelo Bagnasco, se manifestou dia 11 de fevereiro, indicando ao Senado que a votação deveria ser secreta.  O primeiro-ministro respondeu dizendo que a decisão caberia ao Parlamento, não aos bispos.

Renzi está pressionando a todo custo para que o texto seja aprovado. Talvez pelo fato da Itália ser o único país da Europa ocidental a não ter uma legislação sobre união civil gay; ou pelo fato de o país ter sido condenado pela Corte Europeia de Direitos Humanos de Estrasburgo por violação dos direitos humanos justamente por não ter uma lei sore o assunto; ou mesmo porque Roma esteja sendo obrigada a pagar uma multa de 5.000 euros aos três casais que apresentaram a denúncia; ou ainda porque a Corte Constitucional italiana colocou em xeque aqueles que defendem a inconstitucionalidade da futura lei. Para a juíza Melita Cavallo, as uniões de fato precisam de uma disciplina, até “porque isso não retira nada aos direitos dos outros, que escolhem se casar”, declarou.

Não importa o motivo, diz Giuseppe Sartori, “não existem mais desculpas para atrasar a votação de uma lei tão importante para nós. A política italiana deve deixar a influência bizantina e pensar em se enquadrar dentro das diretivas europeias”.

Futuro

Para Sartori, essa é uma proposta de desenvolvimento e mudança cultural, que reconhece os direitos civis das minorias que reivindicam um espaço dentro da sociedade. “Ela (a lei) mexe com paradigmas sociais de uma cultura machista que tem dificuldade de aceitar as diferenças e fazer mudanças.”

No entanto, para pressionar o governo, um grupo formado por 400 pessoas, entre artistas, intelectuais, escritores, jornalistas e personalidades públicas da televisão assinaram um apelo para pedir ao parlamento que aprove o projeto de lei que legaliza a união civil, inclusive com uma petição no site Change.org

Enquanto o Senado italiano discute a votação da lei, a União Europeia anunciou, em 20 de fevereiro, que vai adotar no primeiro semestre deste ano um regulamento para facilitar a circulação e o reconhecimento de documentos de estado civil entre os países membros, incluindo certidões de casamento, nascimento e adoção. Segundo o europarlamentar Daniele Viotti, do Partido Democrático e presidente do Integrupo para os direitos LGBTI, “serão introduzidos certificados standards que não fazem descriminação baseada no sexo. Nos certificados de matrimônio, serão cônjuge A e cônjuge B, para as uniões civis, companheiro A e companheiro B e para as adoções, genitor a e genitor 2”.