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Crianças imigrantes da América Central são vítimas de abuso na fronteira com EUA

Militarização e crise econômica denotam a incapacidade governamental. 'Sonho americano' se transformou em pesadelo para menores centro-americanos

Agência EFE

Segundo a Casa Branca, nos últimos oito meses, 50 mil menores de 18 anos foram detidos e serão deportados

Tegucigalpa – O “sonho americano” e a ilusão de uma vida melhor, longe da violência e da miséria que sacodem seus lares de origem, se transformaram em um verdadeiro pesadelo para milhares de menores centroamericanos sem documentos – em sua maioria provenientes dos países do Triângulo Norte (Guatemala, El Salvador e Honduras) – que entraram nos Estados Unidos, ou que, diariamente, seguem tentando, empreendendo uma viagem que os expõe a todo tipo de abuso e vergonha.

De acordo com dados da Casa Branca, nos últimos oito meses, quase 50 mil menores de 18 anos foram detidos, presos em centros de processamento migratórios e serão deportados. Um aumento de quase 90% em relação ao ano passado, que está desatando uma crise humanitária que as próprias autoridades norte-americanas qualificam de “sem precedentes”.

Para abordar esse tema tão delicado e incitar a enfrentar as razões que estão provocando o êxodo massivo, o vice-presidente, Joseph Biden, se reuniu recentemente com as autoridades dos três países centro-americanos e do México. “É uma situação insustentável e inaceitável, e temos uma responsabilidade compartilhada. Quero ressaltar que os Estados Unidos reconhecem que é necessário enfrentar as raízes que causam essa situação”, disse naquela ocasião.

Biden anunciou que os Estados Unidos destinarão US$ 9,6 milhões para a reinserção dos migrantes repatriados e outros 244 milhões para programas de segurança e desenvolvimento social na região.

Para José Guadalupe Ruelas, diretor da Casa Aliança Honduras, um dos elementos-chave na base da onda migratória de jovens em direção aos Estados Unidos é a violência da qual são vítimas.

Êxodo e violência

“A violência ancestral e a sua matriz colonial contra a infância e a mulher foi se aprofundando e se diversificando nas últimas décadas. A entrada com força do crime organizado, que está de mãos dadas com a corrupção, e sua ramificação nas instituições do Estado se transformou em um negócio muito forte e aprofundou a agressão e o aniquilamento das crianças e dos jovens”, disse Ruelas aOpera Mundi.

Na falta do Estado e em um entorno social caracterizado por grupos de delinquentes que os ameaçam, extorquem e abusam, o efeito imediato tem sido o aumento sustentado das mortes violentas de crianças e jovens.

Durante os primeiros cinco meses do ano, o Observatório da Violência da Universidade Nacional Autônoma de Honduras (Unah), registrou uma média mensal de 90 jovens menores de 23 anos assassinados, mas essa quantia aumentou para 102 no mês de maio. Além disso, nos primeiros meses do ano foram registrados 40 massacres, cujas vítimas são, em sua maioria, jovens.

Apesar de ser difícil prová-lo, para Ruelas existe também um padrão muito evidente de que há operações de “limpeza” contra jovens. “Há pessoas organizadas com grandes recursos econômicos matando crianças pobres e o Estado está totalmente ausente. A impunidade chega a 92% dos casos”, disse.

De acordo com dados da Casa Aliança, dos 3,7 milhões de jovens menores de 18 anos que existem em Honduras, um milhão não está indo à escola, 500 mil estão sendo explorados para o trabalho e cerca de oito mil vivem nas ruas. Em 2013, 2 mil crianças de 12 anos tiveram de abandonar os estudos por ameaças de morte e 17 mil famílias tiveram de abandonar seus domicílios pela mesma razão.

Migrar para os Estados Unidos se transformou, então, na situação mais viável. “No ano passado, oito mil crianças se foram do país, quatro mil foram deportados e ninguém sabe o que aconteceu com as demais”, disse Ruelas.

Durante os primeiros cinco meses de 2014, a quantidade de crianças e jovens migrantes duplicou. Se a tendência continuar assim, 24 mil crianças podem tentar fugir da violência do país só este ano.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) estimou que 47% dos menores hondurenhos que chegaram aos Estados Unidos se queixam de terem fugido por causa da violência, enquanto a Casa Aliança garante que 80% dos que foram deportados antes de cruzar a fronteira fugiram pelo mesmo motivo. “Entretanto, o que mais nos preocupa é que não há uma única criança que chegue ilesa. Todos dizem ter sofrido algum tipo de abuso e violência física e psicológica”, explicou o diretor da Casa Aliança.

Lamentavelmente, a resposta do governo se concentrou exclusivamente na militarização da sociedade.

“Frente a esse problema, o governo, em vez de optar por uma estratégia de recuperação do território de forma pacífica, apostou em aprofundar o militarismo e lançar uma campanha midiática para fazer crer que está obtendo resultados. Dessa forma, está tentando superar suas duas principais debilidades: a falta de legitimidade e de representatividade entre a população”, disse Ruelas.

Essa estratégia, entretanto, que fez o governo de Juan Orlando Hernández se aproximar dos militares, dos setores mais conservadores das igrejas e dos grandes meios comunicação corporativos, parecer não estar dando os resultados esperados.

“A população não vê a violência diminuindo, nem que a pobreza. Está perdendo a esperança e está fugindo de forma massiva. É um êxodo. Calculamos são de 200 a 300 pessoas que diariamente vão embora de Honduras”, completou o diretor da Casa Aliança Honduras em sua análise.

Crise do modelo

Em seu livro “A Construção do Estado e os Regimes Fiscais na América Central”, o pesquisador e catedrático Aaron Schneider evidencia como são as elites centro-americanas que decidem “quais são os setores da sociedade que mais devem pagar pelo conceito de impostos e como os recursos arrecadados deverão ser investidos ou não, e em benefício de quem”.

Nesse sentido, Schneider explica que “a política fiscal distorcida de seu papel redistribuidor teve como resultado uma América Central cada vez mais desigual, com uma clara tendência à concentração”.

Por exemplo, 60% da população com menos recursos ficou com 25% da riqueza gerada nos últimos anos, enquanto os 10% mais ricos concentraram cerca de 40% do total. De acordo com as estatísticas oficiais, em 2014 59% dos centro-americanos (26,5 milhões de pessoas) vivem em condições de pobreza, e 15% vivem na indigência.

Aproximadamente 70% não estão filiados à seguridade social, e 25% não têm acesso a nenhum tipo de serviço básico de saúde. Quase 90% da população de mais de 60 anos não tem aposentadoria. 94% dos indigentes e 87% dos pobres centro-americanos se concentram nos países do CA4 (El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua).

“Sobra poder e falta talento a este governo. Fracassou em matéria de segurança, de proteção da infância e continua com as mesmas políticas de exclusão social. Além disso, aprofundou o autoritarismo, a prepotência e a perseguição contra as organizações que denunciam essa situação”, lembrou Ruelas.

No caso específico dele, no último dia 9 de maio, José Guadalupe Ruelas foi detido por membros da Polícia Militar em frente à Casa Presidencial, em Tegucigalpa, e selvagemente espancado, sofrendo lesões nas costas, costelas, tórax e rosto. Imediatamente depois, os principais meios de comunicação iniciaram uma violenta campanha de desprestígio contra ele e a organização que ele representa. O ataque aconteceu justamente alguns dias depois de a Casa Aliança publicar um relatório sobre o assassinato massivo de jovens.

Da mesma forma, o Observatório da Violência do Instituto Universitário em Democracia, Paz e Segurança (Iudpas) denunciou, nos últimos dias, que a Secretaria de Segurança se negou a entregar a informação que pedia sobre os homicídios em Honduras, obrigando-o a suspender a publicação do “relatório nacional sobre o estado da violência em Honduras”, uma fonte que fazia contrapeso aos dados oficiais.

“Felizmente, esse governo se mexeu tarde e a questão do sofrimento da infância em Honduras já está sendo monitorada nacional e internacionalmente, e saiu do controle da propaganda governamental. Houve apelações muito fortes das Nações Unidas, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O Movimento Mundial pela Infância, os congressistas norte-americanos e a comunidade internacional vão se distanciando de um governo que pretende recrudescer a repressão”, concluiu Ruelas.