Análise

‘América do Sul está encerrando primeiro ciclo de integração’, diz Marco Aurélio Garcia

Para assessor da Presidência, agora é preciso reforçar governança de Mercosul e Unasul, além de transformar aproximação entre vizinhos em política de Estado

Antonio Lacerda/Arquivo EFE

Kirchner, Morales, Lula e Chávez abriram a integração, que agora precisa dar novos passos

São Paulo – Está chegando ao fim o primeiro ciclo do processo de integração dos países sul-americanos, e o próximo desafio será fortalecer os mecanismos de governança do Mercosul, Unasul e demais fóruns regionais criados nos últimos anos, afirmou hoje (16) o assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia. “Precisamos combinar firmeza de princípios em prol da integração com flexibilidade em sua implementação”, propôs, durante conferência na Universidade Federal do ABC, na região metropolitana de São Paulo, organizada para debater os últimos dez anos de política externa.

Garcia defende a União de Nações Sul-americanas como importante mediadora de conflitos regionais, e acredita que o bloco formado por todos os países do continente tem atuado decisivamente nos últimos anos. “Sem Unasul, poderíamos ter tido guerra civil com viés separatista na Bolívia, graves conflitos entre Equador, Colômbia e Venezuela, e teríamos feito ouvidos surdos à violação constitucional que ocorreu no Paraguai com a destituição do presidente Fernando Lugo.” O assessor da Presidência lembrou ainda o pronunciamento conjunto da Unasul após o constrangimento imposto ao presidente boliviano, Evo Morales, ao ter seu avião barrado na Europa. “Sem a Unasul, teríamos ficado inertes frente a esse escândalo, renunciando assim ao forte sentido de soberania nacional dos países que integram o bloco – o que não é suficiente, mas é necessário, para a integração.”

A articulação internacional que originou a Unasul nos moldes atuais faz parte de uma escolha política adotada pelo governo brasileiro a partir da vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, e também da ascensão eleitoral de governos ideologicamente afins em países vizinhos. Segundo Marco Aurélio Garcia, houve uma escolha política que rompeu com a tradição adotada pelo Itamaraty até então no relacionamento com os vizinhos. “Desde o início, tivemos uma preocupação de fazer com que nossa política externa estivesse impregnada pela opção sul-americana: a consciência de que o país necessitava uma relação forte com as nações vizinhas, pautada por agendas econômica, social, política e cultural comuns”, revelou. “Decidimos que o Brasil deveria se fazer presente neste mundo cada vez mais multipolar ao lado de nossos vizinhos, não isoladamente.”

Isso significa que, ao contrário do que se costuma acreditar, a política externa adotada por um país se transforma de acordo com as prioridades de cada governo eleito para governar o país. E essas mudanças, continua o assessor especial da Presidência, acabam criando divergências entre os diferentes atores e interesses existentes na sociedade. “Dizem que nos últimos dez anos se introduziu a cizânia na sociedade brasileira em relação às escolhas da política externa, como se antes houvesse consenso”, pontua.”Mentira. A política externa sempre dividiu: e é bom que divida, porque a divergência de opiniões faz parte da democracia.”

Para Maria Regina Soares de Lima, professora de Relações Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), a disputa interna pelos destinos da política externa brasileira é uma das questões prioritárias para a diplomacia nacional. “O desafio reside no fato de que a concepção latino-americanista definida pelo governo Lula não é hegemônica, e essa hegemonia deve ser conquistada”, explica. “O maior desafio do país no desempenho de seu papel regional depende da sua própria sociedade civil e qual projeto de região seus representantes defendem. A política regional tem característica de políticas públicas. O país deve estar respaldado pelo apoio popular.”

Maria Regina recorda que a construção de blocos regionais exclusivamente formados por países da América Latina, como a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), era uma demanda histórica da região. “Se não houvesse esses espaços, não haveria capacidade de resposta conjunta diante das crises que surgiram”, sublinha, ressalvando que, apesar disso, os meios de comunicação tradicionais e partidos de oposição se opõem a essa vocação diplomática do país. “Há uma discussão de que o Mercosul deveria ser flexibilizado, que atrapalha acordos do país com a União Europeia, por exemplo. Os produtores de commodities preferem integração mínima com a região. Na indústria, há divisão: se o bloco é importante para a indústria, não há por que considerá-lo entrave.”

As atuais divergências internas com relação às escolhas internacionais do Brasil guardam relação, continua a professora da Uerj, com as mudanças de rumos no Mercosul implementadas há dez anos. “Foram quatro inovações principais”, pontua Maria Regina. Primeiro, o bloco foi ressignificado. “Deixou de submeter-se aos ideiais do livre comércio, que dominou os anos 1990 e se encaixava dentro da concepção norte-americana de integração, passando a abraçar também um aspecto político e social”, interpreta. “Foi uma mudança inestimável.”

Em segundo lugar, vem o reconhecimento das assimetrias regionais, ou seja, do fato de que os países sul-americanos que formam o Mercosul possuem capacidades desiguais. “O Brasil sempre demandou tratamento especial nos fóruns norte-sul, mas até então não havia reconhecido essas diferenças nos fóruns sul-sul, onde se destaca”, explica, destacando o terceiro ponto como a decisão de que o país deveria progredir economicamente junto aos vizinhos. “A prosperidade dos outros também nos interessa, seja na perspectiva dos interesses brasileiros ou de uma perspectiva solidária. Não importa.”

Isso acabou permitindo a observância de um quarto fator no giro dado pela diplomacia brasileira em relação à América do Sul: a ideia de construir um polo de poder regional. “Até então, a decisão era construir esse poder no contexto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca)”, define. “É uma vitória que o Brasil tenha se negado a isso.” A existência de uma estrutura regional sem a participação dos Estados Unidos também é festejada pelo secretário-executivo do Foro de São Paulo, Valter Pomar, membro da executiva nacional do PT. “A integração é essencial para nos defender das ondas de choque da crise econômica e política que se espalha pelo mundo”, argumenta, “reduz a ingerência externa, e isso é fundamental para que a gente escolha nosso próprio caminho.”

De acordo com Pomar, os partidos de esquerda latino-americanos que integram o Foro de São Paulo possuem críticas e expectativas em relação à política exterior brasileira. “Queremos que o Brasil assuma papel ainda mais forte e mais ativo do que vem assumindo desde 2003”, revelou. “Mas existem algumas percepções de que em alguns momentos o país deseja se desvincular da região e prefere apresentar-se globalmente como parte dos Brics. A partir do governo Dilma Rousseff e da gestão do chanceler Antonio Patriota, essa crítica cresceu na região.” Outra discordância dos membros do Foro de São Paulo seria a timidez do país em alavancar determinados processos de integração – timidez que seria “incompatível” com a importância, o tamanho e a influência do Brasil no mundo.

“No caso Snowden, por exemplo: havia expectativa que o país pudesse recebê-lo. Se já recebeu o ditador paraguaio Alfredo Stroessner, poderia receber gente melhor. O Brasil também demora em destravar algumas negociações regionais, como Banco do Sul”, afirmou Pomar, lembrando que o país também é criticado nos países vizinhos por uma certa postura subimperialista. “Isso se deve principalmente à ação das empresas brasileiras que atuam no exterior”, diz. “Por isso, é necessário interferir no modus operandi das companhias para que se subordinem ao perfil da política externa do país e deixem de queimar nosso filme lá fora.”