Futuro do futebol

Lei do Mandante: sem negociação coletiva, abismo financeiro entre clubes pode aumentar

Nova legislação altera método de venda dos direitos de transmissão e acende alerta sobre necessidade união dos clubes

Rodrigo Coca/Agência Corinthians
Rodrigo Coca/Agência Corinthians
Em 2018, as cotas televisivas de Corinthians e Flamengo foram de R$ 179,6 milhões para cada. Bahia e Sport, por exemplo, receberam R$ 40 milhões cada

São Paulo – A chamada Lei do Mandante (14.205), que modifica as regras sobre a venda direito de transmissão do futebol, foi sancionada no último dia 17 pelo presidente Jair Bolsonaro. Defendida e celebrada pelos clubes, a legislação apresenta um novo modelo de negócio, porém acende um sinal de alerta: a necessidade de coletividade dos times nas negociações.

Anteriormente, de acordo o artigo 42-A da Lei Pelé, de 1998, para uma emissora transmitir a partida de futebol era necessário negociar com os dois clubes. Com a mudança, a negociação será feita apenas com o time mandante. Isso garante que, mesmo sem contrato comercial, o próprio clube poderá transmitir o evento.

Como a lei não altera os contratos em vigor – que obrigam a detenção dos direitos dos dois clubes –, na prática, os primeiros efeitos serão sentidos na Série B do Campeonato Brasileiro, pois os acordos, hoje feitos com a Rede Globo, encerram-se em 2022. Já a primeira divisão do Brasileirão deverá ter mudanças a partir de 2024, quando a maioria dos contratos terminam.

Entre os clubes da primeira divisão, o único clube que segue sem contrato com alguma emissora para partidas do pay-per-view é o Athletico Paranaense, cujo especialistas apontam que a nova lei abre margem para um problema jurídico.

“No curto prazo, o Athletico será o primeiro beneficiado, por não ter contrato assinado agora na Série A. Porém, ao mesmo tempo que a lei cede o direito ao mandante, também mantém em vigor os antigos contratos. Ou seja, deixou uma margem para um debate jurídico. Eu imagino que uma interpretação em prol do Athletico possa prevalecer, mas é difícil afirmar”, disse Anderson dos Santos, pesquisador, professor e autor do livro Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol.

Negociação coletiva dos clubes

Desde 2020, quando foi editada a Medida Provisória (MP) 984, conhecida como MP do Futebol, os clubes do futebol brasileiro se manifestaram a favor da concessão dos direitos de transmissão ao clube mandante. Diversos times publicaram notas afirmando que a legislação garante mais “liberdade, autonomia e receitas”.

Apesar de garantir mais independência nas negociações, especialistas ouvidos pela RBA afirmam que se houver individualização dos clubes e uma pulverização na venda dos direitos para mais emissores, resultará no aumento da desigualdade financeira entre as equipes. Anderson cita, por exemplo, o fim do Clube dos 13, em 2011, que negociava os direitos de maneira centralizada.

“Quando houve a negociação mais individualizada, entre 2012 e 2018, mesmo com a vigência da lei anterior, vimos um aumento muito grande da diferença de receitas entre clubes com maior poder de barganha com o restante do campeonato. Quando mais individualizado, piorou”, afirmou. Em 2018, as cotas televisivas de Corinthians e Flamengo foram de R$ 179,6 milhões para cada. Bahia e Sport, por exemplo, receberam R$ 40 milhões cada.

O jornalista e editor do site Trivela – veículo especializado na cobertura esportiva – acrescenta que nem a venda pulverizada dos direitos reduz o montante geral de dinheiro que circularia no futebol. “Não existe caso no mundo que dividiu a venda em muitas partes e transformou o bolo em algo maior. Se o campeonato vale um R$ 1 bilhão de maneira exclusiva, ele valerá menos se não for assim”, explicou.

Modelo de negócios

Atualmente, a transmissão da televisão aberta do Campeonato Brasileiro está nas mãos da Rede Globo e a televisão fechada, dividida entre SporTV e a Turner, companhia americana que comprou o Esporte Interativo. Já o pay-per-view também está sob comando da Globo, que transmite por meio do Premiere.

Na avaliação de Anderson, o sistema atual de repartição do dinheiro feito pela Globo, aumentou as diferenças entre os clubes. Atualmente, a emissora gasta entre R$ 1,2 bilhão e R$ 1,5 bilhão para a compra dos direitos do Campeonato Brasileiro. Segundo o pesquisador, caso a venda seja feita sem acordo coletivo, os clubes menores podem se prejudicar.

“A Globo pode pegar esse R$ 1,5 bilhão, que já é gasto com futebol, e repassar para apenas cinco ou quatro clubes com torcidas nacionais. Enquanto os outros clubes, juntos, não vão conseguir arrecadar isso sozinhos”, alertou. Felipe Lobo acrescenta que isso seria aplicado em outras divisões. “Na Série B, por exemplo, a Globo pode se preocupar em comprar os direitos dos times que quer transmitir e só. Imagina o cenário numa Série C. Poucos serão beneficiados com a venda de direitos e vai criar um abismo ainda maior.”

Ambos os especialistas endossam que apesar da Lei do Mandante garantir autonomia para negociações individuais, o melhor caminho é a coletividade, principalmente através da união dos clubes e a criação de uma “liga”. “Quando individualizaram o negócio, quem recebia 6 (milhões de reais) começou a receber 20, e quem recebia 20 aumentou para 100. Tudo bem, todos ganharam mais, mas a desigualdade só aumentou”, alertou Lobo. “É preciso olhar para o macro, não para o micro. Se houver uma pulverização da venda dos direitos, haverá menos dinheiro para dividir”, acrescentou.

Torcedor prejudicado?

A negociação coletiva não só garantiria mais renda aos clubes, segundo os especialistas, como ajuda o torcedor a acompanhar o time do coração. Uma divisão dos direitos de transmissão entre várias plataformas poderá impactar no bolso do telespectador, além de dificultar no acesso aos jogos.

Anderson dos Santos usa como o exemplo a Copa Libertadores, atualmente divida entre plataformas: o SBT, na televisão aberta; a ESPN e Fox Sports, na televisão fechada; e o streaming da própria Conmebol – organizadora do torneio. “Só nisso você tem que pagar os canais fechados, o serviço da Conmebol e ainda uma boa internet para acompanhar. Isso encarece o acesso só a um torneio. O acesso à internet no Brasil ainda é precário, então o lado do consumidor também não é levado em conta”, criticou.

A pulverização da venda de direitos pode levar um torcedor a assinar três ou mais serviços de streaming para acompanhar a equipe durante 38 rodadas, o que pode reduzir o interesse da população sobre o torneio. “Do ponto de vista do torcedor, é uma tragédia. Ficará caro para assistir futebol e difícil para acompanhar seu clube. Pagar três ou quatro serviços para assistir um único campeonato, só afastaria o torcedor. acordo coletivo vale mais para todos. Se não será um risco, tornando inacessível para os torcedores e levando menos dinheiros aos clubes”, avaliou Felipe Lobo.

Nas cinco maiores ligas da Europa, além do campeonato português, vale a regra igual a Lei do Mandante. Na Espanha e na Itália, clubes são obrigados por legislação a cedê-los para ligas compostas por eles mesmos. Na França, os direitos são atribuídos legalmente à federação nacional, e ela os repassa aos clubes.

Exemplos na Europa

Nas ligas europeias, a negociação é coletiva e, em alguns casos, veta o comprador único para exibição do torneio. Na Inglaterra, por exemplo, a venda é feita por pacotes de partidas, que são compradas através de leilões com envelopes fechados. Entretanto, apenas uma única liga pratica a venda individual: a portuguesa.

Em Portugal, a negociação dos direitos de transmissão é feita de maneira individual e cada clube negocia livremente com emissoras. A desigualdade no futebol português é grande. “Em 2019, o quinto colocado do campeonato português recebeu 12 vezes menos do que o Benfica, campeão daquele ano. Lá é um modelo individualizado igual”, relata Anderson.

Felipe Lobo lembra que apesar da Europa aderir a Lei do Mandante a negociação coletiva é defendida pelos clubes. “Em Portugal, há a venda individual por enquanto, pois os clubes já trabalham para mudar isso a partir de 2028, porque a desigualdade prejudicou a liga”, explicou.

Para Anderson dos Santos, os portugueses são exemplos do caminho contrário que o Brasil deve seguir. “Quando vejo o presidente do Fortaleza, Marcelo Paz, dizer que, se houver problema com Corinthians e Flamengo, outros 18 clubes se juntam e negociam coletivamente, ainda assim haverá uma diferença grande. O poder de barganha dos dois juntos é maior do que o restante, porque são torcidas nacionais, enquanto a maioria é formada por torcidas estaduais e regionais”, alerta.

O pesquisador finaliza que o ponto central da Lei do Mandante é os clubes entenderem a necessidade de valorização do produto e criar uma capacidade para que todos possam competir. “Se manter uma grande desigualdade, uma hora as pessoas irão cansar e restringir o nicho do futebol. Hoje, o Brasil tem concorrência dos torneios europeus, então é necessário pensar o produto como um tudo e seja atraente.”