Espírito de coletividade

Skate, surfe e break dance ‘são antídotos à narrativa bélica e individualista da competição’

Para psicanalista, novas modalidades esportivas incluídas nos Jogos Olímpicos, trazem uma visão diferente da lógica neoliberal, de “vencer a qualquer custo”, e também podem ser exemplo para combater o espírito do mundo corporativo

COI/ Reprodução
COI/ Reprodução
"Chegar na final é uma coisa, vencer é outra. Chegar na olimpíada, como tantos brasileiros chegaram, é por si só uma grande realização", destaca Christian Dunker

São Paulo – As imagens de atletas do skate e do surfe nos Jogos Olímpicos de Tóquio neste ano reforçaram o sentido de coletividade dos esportes e trouxeram mais um reconhecimento para o Brasil. O Comitê Olímpico Internacional (COI) concedeu na última quinta-feira (12) à skatista Rayssa Leal o prêmio Visa Award, por melhor representar os valores olímpicos nos Jogos. 

Por votação popular, o público das Olimpíadas viu no abraço da menina de 13 anos de Imperatriz do Maranhão – medalha de prata na categoria street –, dado à japonesa e vencedora da prova Momiji Nishiya, a “amizade” e a “esportividade” que “tem maior significado do que ganhar a medalha de ouro”. Assim como o skate, o surfe também chamou atenção por trazer uma nova visão, principalmente pela sua interação com a natureza. 

E a aposta do psicanalista e professor Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker é que próximo ciclo olímpico, daqui a três anos, tenha ainda mais cenas semelhantes com a inclusão do break dance. Em entrevista a Glauco Faria, no Jornal Brasil Atual, Dunker analisa que esses esportes “estão funcionando como antídotos da narrativa da autossuperação sem limites, do individualismo e do sentido bélico da competição em que, se um ganha, o outro perde. E onde só há espaço para um certo contexto ‘egológico’ que tem feito muito mal para os esportes no geral”, elenca.

Estar nos Jogos já é uma vitória

A mudança de cultura, explica o psicanalista, também é importante porque a lógica de ganhadores e perdedores é replicada historicamente como um “espírito da vida corporativa”.

“É uma imagem do que é a vida nas empresas, elas tomam essas palavras como mote, usam os esportistas como exemplo”, comenta. No Brasil, o peso é ainda maior por ser também aplicado como uma “maneira de lermos a nossa própria desigualdade”. Segundo o professor da USP, há uma cultura internalizada “de que só tem lugar para o vitorioso. O segundo, terceiro, quarto são só ‘ninguéns’, escadas para aquele que vence”. 

Mito neoliberal

O que é “muito simplificador” principalmente em um país que passa por um desmonte das políticas públicas esportivas. Conforme dados levantados pelo Brasil de Fato, o programa Bolsa Atleta, criado no governo Lula, vem desde a gestão de Michel Temer (MDB) sendo reduzido. Sob o governo Bolsonaro, o programa ainda teve a maior perda histórica, com uma redução de 17% do orçamento. Foram R$ 530,4 milhões nos últimos cinco anos de preparação para as Olimpíadas de Tóquio, contra R$ 641,1 milhões em média, entre 2013 e 2016. “Chegar na final é uma coisa, vencer é outra. Chegar nas Olimpíadas, como tantos brasileiros chegaram, é por si só uma grande realização”, destaca. 

Aplicada também ao ambiente corporativo, essa cultura ainda se confunde com a meritocracia. Uma falácia que usa de histórias reais de superação das desigualdades do país, para moldar o mito do self made man. Isto é, a ideia de que a pessoa fez tudo sozinha, por meio de esforço próprio e individual. E que ignora a dimensão coletiva, do apoio familiar a um projeto social ou governamental, por exemplo. Esse tipo de narrativa é por vezes alimentado por parte do jornalismo da mídia comercial e caracteriza a lógica do neoliberalismo, como aponta Dunker. 

Coletividade

“Isso para o caso do Brasil é muito ruim, porque acaba deixando de lado a ideia de que a gente precisa contar a história de que os vencedores, no fundo, não foram feitos de inúmeros sacrifícios individuais, mas de uma família que abre mão e de uma comunidade que apoia”, ilustra. “O problema reverso desse discurso pode insinuar que basta que a pessoa se sacrifique mais, que qualquer um pode chegar a ser um grande surfista como o Ítalo (Ferreira), que começou surfando com uma plataforma de isopor, porque é só trabalho e sacrifício. O que é obviamente uma falácia. Não é assim, só sacrifício, dedicação e transpiração. Sem isso não vai acontecer, mas esse nexo acaba sendo reforçado pela narrativa do super herói individual em que só se conta o último capítulo”, critica o psicanalista. 

Confira a entrevista 

Redação: Clara Assunção


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