Deu pra ti

Trovas contra trevas: Kleiton e Kledir celebram 40 anos com show, filme e biografia

Irmãos relembram canções e histórias de quatro décadas, lamentam “era da ignorância” e planejam volta ao palco

Bolívia e Cátia Rock
Bolívia e Cátia Rock
Kleiton e Kledir começaram ainda nos anos 1970, no grupo Almôndegas, até conquistar o Brasil na década seguinte

São Paulo – Era ainda a segunda metade dos anos 1970, com uma certa expectativa de liberdade, quando um grupo de cinco rapazes entrou em uma Kombi, levando uma cozinheira (Noeli), de Porto Alegre para o Rio de Janeiro. Era o grupo gaúcho Almôndegas, que já chamava a atenção em apresentações e festivais. “Viemos para passar seis meses (em 1977), que era o projeto inicial, nunca mais fomos embora”, diz Kledir Ramil, um dos integrantes. A banda se desfez, mas ele e o irmão Kleiton, um ano e meio mais velho, montaram uma dupla que invadiu a praia Rio-São Paulo cheia de novidades musicais. Kleiton e Kledir, a dupla, completou 40 anos de estrada em 2020.

“Era uma sequência do Almôndegas”, lembra Kleiton. Tanto que o baixo era de João Baptista e a guitarra foi assumida por Zé Flávio, músicos da última formação da banda, que lançou quatro discos, de 1975 a 1978. Dessa forma, dois anos depois, surge o primeiro LP dos irmãos. Eis que os gaúchos de Pelotas – ou Satolep, como cunhou Vitor Ramil, o caçula – tomaram conta da cena artística, com um trabalho universal e original: música popular brasileira, reunindo elementos regionais.

Identidade musical

“Acho que eu e Kledir conseguimos criar uma novidade pra música brasileira a partir da cultura do Sul do Brasil.” O irmão completa: “O que a gente queria era entender a nossa identidade e transformar na nossa música. Essa tomada de posição, mais que uma preocupação, foi um processo de consciência de quem nós somos, como é que a gente fala, como é que a gente age”. Essas histórias, assim como as celebrações dos 40 anos de carreira conjunta, são contadas no programa Colibri na Quarentena, da Rádio Brasil Atual, que foi ontem (30) ao ar. Confira abaixo:

A festa das quatro décadas seria realizada em 2020, mas a pandemia atrapalhou mais esse plano. Mas nem por isso eles pararam. Contam que tem um filme sendo planejado, contando a história da dupla, um programa de TV em produção e uma biografia, escrita pelo jornalista Emílio Pacheco, que deve sair até o fim do ano. Tem ainda música nova, que está para sair, em homenagem a Santa Catarina. Muitos shows previstos – Casa Ramil, reunindo a família, com o grupo Nenhum de Nós, com a Sinfônica de Porto Alegre, com o conjunto catarinense Expresso Rural. Enquanto as apresentações presenciais não voltam, no início de junho eles fizeram um show no Teatro Claro Rio, sem público, para celebrar os 40 anos.

Arte e ciência

Como o apresentador Oswaldo Luiz Colibri Vitta observa, com a concordância dos dois, esta pode ser uma tendência que veio para ficar: o formato híbrido das apresentações, com público e com transmissão. “Eu brincava que era um show delivery, fique em casa que a gente vai aí”, diz Kledir, comentando sobre o show recente, que segundo estimativas chegou a 1 milhão de pessoas. Teve espectador até do Camboja, contam. “Quando passar essa loucura toda, a gente vai poder, quem sabe, juntar as duas coisas, fazer show com público e ao mesmo tempo também poder transmitir”, comenta o músico.

A conversa, claro, vai para a pandemia. Kleiton e Kledir já tomaram as duas doses da vacina. E lamentam que o governo atual vá no rumo contrário ao da ciência. Kledir conta que quase não saiu de casa do ano passado para cá. Só fez isso para votar, fazer o show e ser vacinado – e ir ao dentista, como no dia da entrevista. Com um bando de músicos na família, por sinal, ele lamenta que ninguém tenha resolvido estudar Odontologia.

Da ditadura à ignorância

“Todo mundo tem que se dedicar, não só vacinar, mas incentivar as pessoas, e também servir de exemplo. Vamos continuar com esse rigor de distanciamento”, afirma. “É uma tragédia não só para os artistas, para a humanidade. O que foi possível fizemos. Quando a coisa começou, a gente pensou que ia durar dois ou três meses, já vão quase dois anos…”

Essa angústia faz com que músicas como Circo de Marionetes, por exemplo, composta 50 anos atrás, pareça atual. “Naquela época a gente estava lutando contra uma ditadura terrível”, lembra Kledir “E hoje a gente está lutando contra uma era de ignorância, de gente negando a ciência, um negócio inacreditável.”

Marketing do mal

“O que tá acontecendo hoje é uma coisa horrível, desagradável, antiproducente”, diz Kleiton, que concorda com Colibri em chamar o presidente apenas de inominável. “O marketing dele é o marketing do mal, da briga.” Para o irmão, o governo é irresponsável em todas as áreas: saúde, educação, ambiente, cultura. “A gente lutou contra a ditadura. Hoje vejo com tristeza vendo essa democracia sendo ameaçada, correndo risco de repente de perder tudo que se conquistou. A gente vai levar anos pra recuperar tudo que está sendo destruído.”

Mas a mudança tem que começar da própria pessoa, acrescenta Kledir, que se tornou vegano. “Qualquer atitude nossa é sempre uma postura política. Esse algodão da minha camiseta vem de onde? Que cadeia estou alimentando, pra quem a gente está dando o nosso dinheiro. de onde vem a bateria do meu iphone?”

Esperança e sonhos

Foi também essa sensação de angústia que levou a uma criação recente, Paz e Amor, que os dois gravaram no ano passado com o MPB4. Mas a canção fala também de esperança, sonhos. “Eu e Kleiton, a gente nasceu com Netuno em Libra, uma geração de sonhadores, rompemos com vários tabus de comportamento. Espero que essa pandemia traga pelo menos essa reflexão. É possível, sim, fazer um mundo muito melhor do que esse que está aí.” Kledir conta que recebeu a melodia do irmão e ficou imediatamente emocionado. “Eu escrevi essa letra chorando, assim como eu ouvi essa música chorando. Depois de escrever os versos, peguei o violão, fui cantar pra minha mulher e chorava.”

A gravação virtual entre a dupla e o grupo vocal remete aos laços que unem esses músicos de diferentes gerações. Um dos grandes sucessos do MPB4, Vira Virou, por exemplo, é de Kleiton. “Eram ídolos nossos, a gente se criou aprendendo com eles, vendo eles fazerem. A (gravadora) Ariola também nos contratou e o MPB4 nos carregou pelo Brasil afora, durante um ano meio. Foram muito generosos conosco. No meio do show a gente entrava, a partir dali a nossa carreira deslanchou, fomos apresentados para o público do Brasil inteiro. A partir disso, ficamos muitos amigos, várias parcerias foram realizadas e várias gravações, culminando com essa parceria do Paz e Amor.”

Letra e música

Assim, o “caldeirão criativo” dos dois músicos é variado, conta Kleiton. “Sempre tivemos muita liberdade. Tivemos obras individuais, obras com outros parceiros. Na época do Deu pra ti, criei um método composicional, uma oficina de criação”, acrescenta, dando o exemplo de Vira Virou, resultado de seu encantamento na primeira viagem à Europa. “Escolhi primeiro o ritmo, depois uma grade harmônica, a melodia, e finalmente o Kledir pôs a letra. Hoje em dia trabalhamos nesse formato.”

Já o Autorretrato surgiu de forma diferente. Kledir sonhou com a música. “Acordei no meio da noite com aquela ideia rítmica e alguns versos. Anotei um monte de coisa e voltei a dormir”, lembra. “Acordei, dei uma retrabalhada nos versos e mandei pro Kleiton. E ele criou essa sequência harmônica que é maravilhosa. É uma conversa entre dois amigos, cada um fala de si, vai contando alguns segredos… Eu digo sempre que é uma conversa de bar.” Confissões entre amigos na boca da noite.

Capa do segundo LP da dupla, lançado em 1981. Irmãos têm uma série de projetos para marcar os 40 anos de estrada (Reprodução/Rodrigo Lopes)

Gre-Nal familiar

A conversa, claro, não deixaria de incluir o futebol, com a rivalidade que divide os gaúchos. Kleiton é gremista, Kledir é colorado. Mas, no programa, o torcedor do Grêmio apareceu com uma blusa vermelha. Um gesto que, provavelmente, causaria indignação em torcedores mais exaltados. “Eu não sou torcedor fanático, não gosto de fanatismo no futebol”, pondera Kleiton. “Essa turma que torce fanaticamente, como os hooligans na Inglaterra, é muito triste. Isso não é esporte, o espírito esportivo é o prazer, a beleza do esporte.”

Bah, tanto é assim que a música mais conhecida da dupla, Deu pra ti, tem duas referências explícitas ao Internacional: o ex-jogador Falcão e o estádio do Beira-Rio. Como assim, Kleiton? Tranquilo, ele explica que a letra traz uma homenagem a um grande jogador, independentemente do clube. E revela: “Quando vai pro palco, de brincadeira, eu não canto essa parte. Fico gritando ‘Arena, Arena'”. A referência é ao estádio do Grêmio. Além disso, quando Kledir vai cantar Paixão, que ele compôs, Kleiton afirma no show que existe uma música mais bonita, e cantarola “Até a pés nós iremos, para o que der e vier”, versos iniciais do hino gremista, composto por Lupicínio Rodrigues. No momento mesa-redonda do programa, os dois trocam ideias sobre o atual momento dos times e sobre treinadores. Crítico, Kleiton defende que tanto jogadores como políticos ganhem menos.

Tempos de Almôndegas, nos anos 1970: quatro discos e uma Kombi se aventurando do Rio Grande para o Rio de Janeiro (Reprodução)

Na casa da família em Pelotas, eram seis filhos, quatro homens e duas mulheres. Perto dos 70, que completará em agosto, Kleiton é o segundo. Kledir chegou aos 68 em janeiro. O caçula Vitor tem 59. Os pais (Kleber, engenheiro, e Dalva, professora) incentivaram o aprendizado da música, mas, esperando uma profissão mais “tradicional”, se surpreenderam com os rumos dos meninos.

Passando o bastão

Aliás, eles também não esperavam ser músicos profissionais, já que se preparavam para seguir carreira acadêmica – tinham saído de Pelotas para Porto Alegre para fazer faculdade. Só que quando perceberam, passados festivais e noitadas, já estavam irremediavelmente na música. E a mesma coisa aconteceu com filhos e sobrinhos. “O pessoal pensa que é contrário, mas não. Que bom que eles querem trabalhar conosco”, brinca Kleiton. “A gurizada nova nos coloca um oxigênio que é muito bom, eles têm uma outra maneira de pensar, de criar e de fazer as coisas. E os véio vão ali, só aprendendo”, emenda Kledir.

Aprendendo e celebrando o correr da vida nos encontros familiares e musicais na praia do Laranjal, em Pelotas, citada em canções. Assim, na Casa Ramil habitam ainda Ian (filho de Vitor), João (filho de Kledir), Gutcha e Thiago (filhos de Kátia, irmã da dupla), e a produtora – e irmã – Branca.

Com o MPB4, em 2020, cantando ‘Paz e Amor’: parceria que surgiu no começo da carreira e virou amizade para sempre (Reprodução)

Estudar, ler, desenvelhecer

Separados em 1987 e reunidos novamente, os dois tiveram produção incessante. No ano passado, por exemplo, conseguiram lançar um álbum em espanhol que havia sido gravado em 1985. Ambos têm cidadania espanhola, por parte do avô paterno. Eles também fizeram um show só com músicas para crianças, Par ou Ímpar, um projeto de 2015 com o grupo circense Tholl, que Kleiton considera “o trabalho  mais lindo que a gente já fez na nossa carreira”. Para isso, conta Kledir, tiveram que “desenvelhecer” e trabalhar com temas eternos para crianças, como o amor aos animais e as mágicas.

Mas os véio, claro, têm muito a deixar para a gurizada. Estude muito, recomenda Kledir. Quanto mais domínio do instrumento, maior é a capacidade de criação, de elaborar sequências harmônicas. “Em termos de letra, leia muito.” Ele cita uma série de criadores da música popular, como Noel Rosa, Vinícius de Moraes, Dorival Caymmi, Chico, Caetano, Gil, Aldir Blanc. “Todos grandes mestres da palavra, é uma escola que não tem fim. E se você conseguir dominar o inglês, escute tudo de Cole Porter”, sugere. “Bob Dylan”, acrescenta Kleiton.