"Andrajo"

Álbum de Danilo Medeiros traz as dores e incertezas da pandemia e do retrocesso, à espera da volta por cima

Arranjador, produtor e compositor carioca, há 15 anos em São Paulo, fala de seu trabalho em entrevista ao programa “Colibri na Quarentena”

Rodrigo Reis
Rodrigo Reis
'Tinha muita coisa pra dizer', afirma o autor sobre seu primeiro álbum

São Paulo – Carioca de Botafogo, Danilo Medeiros conviveu com uma discoteca enxuta na casa dos seus pais, na infância. Pequena, mas com gente como Nara Leão, Tom Jobim, Chico Buarque, Dominguinhos, Gilberto Gil e Zé Ramalho, além de trilhas de filmes e obras do erudito russo Rimsky-Korsakov. É assim que o arranjador, produtor e compositor se apresenta: meio Chico, meio Korsakov, meio Rio, meio São Paulo – onde mora há 15 anos, mas se mantendo como torcedor “não praticante” do Fluminense. Um caldeirão de referências e tons que se traduz em Andrajo (selo Baticum), seu recém-lançado álbum de estreia.

Trabalho pessoal, mas coletivo, repleto de participações (“Ajuda luxuosa de muita gente boa”), com 10 músicas inéditas, sendo três instrumentais. Gravado em quatro dias. “Fazer esse disco foi meu caminho, meu jeito de conviver (com a pandemia), foi terapêutico demais, foi uma coisa que eu precisei fazer. Eu estava cheio de coisas pra dizer”, diz o autor em entrevista Oswaldo Luiz Colibri Vitta, no programa Colibri na Quarentena, que foi ao ar ontem (2), na Rádio Brasil Atual. Assista aqui.

Incertezas pessoais e coletivas

Andrajo, faixa-título, significa “farrapo”. Traduz a angústia do atual período, uma marca desse trabalho. Danilo fala em “um tempo de incertezas pessoais e coletivas”. Assim, ele também misturou músicos e sensações. No caso de Andrajo, a composição nasceu de um encontro com o amigo e parceiro Bruno Ribeiro, em Campinas (SP), e de uma conversa justamente com um morador de rua, que mostrou conhecimento musical. O sem-teto deixou de ser invisível. “São esses panos sujos , essas vestimentas do cara que está na rua.”

A interpretação pungente, com arranjo de cordas, é da cantora e atriz paulista Juliana Amaral, com 25 anos de carreira. “Andorinha sem razão nem destino/ (…) Noite e dia apodrecer/ Junto aos vagabundos, meus irmãos/ Rei dos trapos, rei dos reis/ Muito mais do que eu sonhei/ Ser feliz em meio à dor e aos espinhos”.

Retrocesso político e cultural

A dobradinha Danilo-Bruno assina ainda as faixas Alma de Ginasta (“Uma MPB clássica”, na sonoridade dos anos 1970, define), interpretada por Mirella Celeri, e Pra Quê?, outra composição que reflete o período de reclusão imposto pela pandemia. Como diz o autor, trata da insatisfação: “A gente não consegue ser feliz, ver um país melhor”. A angústia da letra se ameniza com o balanço do samba-rock, com participação especial do jovem trombonista Allan Abadia, que em 2019 lançou seu primeiro álbum, Malungos.

A canção ironiza e lamenta o retrocesso político e cultural do Brasil, especialmente a partir de 2018. Para Danilo, a ausência de políticas de incentivos à cultura, sistematicamente combatidas pelo atual governo, é algo “criminoso”. Ainda mais em um país com tanto potencial. “A cultura brasileira é o que temos de melhor. Não tem pra ninguém”, afirma, na entrevista a Colibri. “Os talentos estão aí, em todo lugar. Você enche um ProAC (programa de ação cultural), ficam 200 caras maravilhosos de fora.”

danilo medeiros
Capa de ‘Andrajo’, de Danilo Medeiros: 10 faixas e muitas participações (Reprodução)

Marcha-regresso é parceria de Danilo Medeiros com o cantor (ou crooner) e escritor Fernando Szegeri, do Inimigos do Batente. Foi composta para um festival promovido pelo Ó do Borogodó, bar e reduto da música no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, que resistiu às intempéries pandêmicas. O compositor e professor Chico Saraiva toca violão e viola. Rosa de Areia, um samba-canção, ganha vida com o Mani Padme Trio (Ricardo Mosca, Yaniel Matos e Sidiel Vieira), interpretado por Cadu Ribeiro, integrante do Trio Gato com Fome, aqui passeando por outra praia.

Do skate para a guitarra

Dessa forma, o menino carioca Danilo ainda tateava quando entrou em uma loja de departamentos para comprar um skate. Mas bem ao lado tinha uma guitarra. “Muito ruim. Mas pirei na guitarra”, lembra. Saiu de lá para estudar na Musiarte, tradicionalíssima escola do Rio de Janeiro. Teve aulas, por exemplo, com Leonardo Luccini (do Nó em Pingo em d´Água, grupo referência em chorinho) e com o baixista Nico Assumpção – que, por sua vez, teve professores como Paulinho Nogueira e Luiz Chaves (Zimbo Trio). Assim, Danilo começou atuando como baixista, ainda nos anos 1990, na onda das bandas de rock daquele período.

Ele define seu álbum – produzido pelo próprio Danilo e mixado pelo baterista Ricardo Mosca – como introspectivo. O que não impediu a inclusão de Ventania, um vigoroso samba, que conduz um brado e chamamento à ação contra quem iludiu e intimidou. Tem O canto do samurai nagô, do historiador e escritor Luiz Antônio Simas, como texto incidental. Quase um “samba de protesto”, interpretado pelo Inimigos do Batente, grupo que há duas décadas bate ponto no Ó do Borogodó, na voz da cantora paraense Railídia, há tempos em São Paulo e sempre presente nas rodas de samba: “Quem roubou vai pagar/ Quem mentiu vai calar/ Quem matou vai morrer/ Quem bateu vai levar”. Porque os ventos mudam.


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