História na tela

Novo filme de Lucia Murat revisita memórias dolorosas da América Latina

Em “Ana. Sem título”, a busca de uma artista, mulher, negra, libertadora, conduz viagem a ambientes de opressão e efervescência na memória do continente

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A cineasta Lucia Murat, a atriz Stela, a assistente Andressa: a procura por Ana

São Paulo – Lucia Murat viveu a opressão da ditadura, sentiu na pele as dores da prisão e da tortura, e leva para seus filmes essas marcas. Em Ana. Sem Título, com lançamento nos cinemas na próxima quinta-feira (29), a documentarista revisita também outros países da América Latina. E assim, por histórias e ambientes distintos, o filme conta a saga de uma equipe a procura de Ana – artista negra, brasileira, ativista dos direitos humanos –, a partir de cartas trocadas entre mulheres artistas latino-americanas, durante os anos 1970 e 1980.

Países como Brasil, Argentina e Chile, que viveram sob ditaduras sangrentas. Ou México, e sua democracia liberal intolerante com a rebeldia estudantil. E Cuba, no calor de uma onda revolucionária, que, inclusive, foi pretexto para ditaduras do continente.

As cartas indicam os rumos de Ana e traçam o itinerário para onde essa equipe tem de ir. Assim, a cineasta Lucia Murat, a atriz Stela, o fotógrafo Léo Bittencourt, a assistente Andressa Clain Neves, saem do Brasil rumo a Cuba, depois Argentina, México e Chile. Lucia Murat conta que partiu da premissa de que podia fazer um road movie, documentar essas artistas latino-americanas em seus países, falar das suas obras, das suas vidas.

Lucia Murat
A arte de Ana: busca pela liberdade e contra todas as formas de opressão
(Foto: Divulgação)

Desse modo, a cineasta diz ter escolhido essa equipe brasileira diferenciada, representativa de diversas situações: “A minha geração, que realmente tinha vivido aquela época (da ditadura). A do fotografo que é de uma geração que não viveu a ditadura e os pais também não tinham conhecimento. A da Andreza que viveu situações de racismo, inclusive no próprio filme. E a atriz, personagem criado, e que tem obsessão em encontrar Ana, diferente do resto da equipe que trabalhou com as próprias realidades.”

Direito à memória

O filme, livremente inspirado na peça Há mais futuro que passado, de Clarisse Zarvos, Daniele Avila Small e Mariana Barcelos, começou a ser filmado em 2018. “A gente teve uma coincidência muito positiva, que foi a exposição Mulheres Radicais (na Pinacoteca de São Paulo), da qual a gente parte.” As filmagens em Cuba, Argentina, México e Chile ocorreram em 2019.

“A questão da memória, dos museus de direitos humanos, muito presentes no filme, acabou tendo presença maior justamente porque o governo Bolsonaro já tinha sido eleito”, diz Lucia Murat. “E para nós era muito impactante que nesses países você tinha o direito à memória, à preservação da memória, uma preocupação com a educação da juventude em relação a esses fatos que a gente não tinha aqui. E que a gente sempre se perguntou: se a gente tivesse tido isso, talvez não estivéssemos vivendo essa tragédia. Realmente, o filme não foi pensado para ser apresentado durante essa pandemia, durante o governo Bolsonaro, mas ele já foi filmado quando Bolsonaro estava eleito. E acho que isso levou também a que a questão da memória tivesse tido impacto tão grande no filme. Isso porque teve impacto muito grande em nós, que estávamos presentes nesse país.”

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Somos Ana

Desde seu primeira longa-metragem, o Que Bom Te Ver Viva, Lucia Murat lembra que sempre trabalhou muito com a mistura de ficção e documentário, essa interseção entre dois modos aparentemente tão distintos de fazer cinema. “Foi sempre uma necessidade, como se nenhum dos dois me bastasse. No caso do Ana vivi essa experiência de uma forma muito radical. Um desafio muito grande, que o espectador acreditasse que é um documentário e que ao mesmo tempo tinha sido ficcionado, totalmente dirigido.”

Se Ana é a parte documental ou ficção, vale a pena conferir no novo filme de Lucia Murat, essencial nesses tempos em que o Brasil parece ter esquecido seu pior a ponto de revivê-lo por meio de um personagem boçal como o atual presidente da República, mas tragicamente real. 

“Ana representa todas as artistas que foram silenciadas, torturadas, humilhadas. Ela é uma representação da mulher, da artista latino-americana, da mulher que resistiu, da mulher rebelde.”

Nunca esqueceremos

Para Lucia Murat, reviver, nas falas de Bolsonaro, parte do que levou a tantos milhares de brasileiros aos porões da ditadura, é o horror. “O que está acontecendo hoje, o que é mais trágico para nós, ex-presas políticas, é que a gente vê que o governo é a ascensão dos porões. O que a gente chamava de porões eram os torturadores, era o DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), era o sistema de inteligência e de tortura que a gente viveu durante a ditadura”,  lamenta.

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“Ironicamente na época da ditadura eles negavam que existia tortura. Tortura era institucionalizada e existia, mas oficialmente o governo negava. Hoje a gente vive uma situação tão trágica que o governo defende tortura. Então, efetivamente para nós é uma situação muito difícil. A gente vê essas pessoas falando e se lembra dos torturadores, porque eles falam igual aos torturadores. Eles são homofóbicos, eles destratam as mulheres, eles gaguejam, não sabem falar, são incultos. Exatamente aquelas pessoas que a gente conheceu naquela situação tão difícil.”