Sindicalistas querem abrir arquivos de empresas que colaboraram com ditadura

Proposta foi reforçada hoje durante audiência pública realizada pela Comissão Estadual da Verdade com representantes dos trabalhadores em São Paulo

Os sindicalistas recordaram que houve dados dos trabalhadores utilizados pelo regime na repressão (Foto: Assembleia Legislativa)

São Paulo – Dirigentes sindicais da época da ditadura (1964-1985) e outros ainda em atividade concordaram na manhã de hoje (4) com a necessidade de abrir os arquivos não apenas das Forças Armadas e dos órgãos de repressão do regime, mas também das empresas que colaboraram com o governo militar. Coincidiram ainda na importância de as centrais brasileiras unirem forças para resgatar a memória dos trabalhadores perseguidos durante os anos de chumbo. Caso contrário, preveem, práticas antidemocráticas continuarão vigentes dentro e fora das fábricas.

Representantes de várias correntes sindicais foram convidados pela Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva” para audiência pública na Assembleia Legislativa nesta quinta-feira. O debate faz parte da Semana Nacional de Memória e Direitos Humanos e foi organizado em conjunto com o Projeto Memória da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo.

“Pesquisando nos arquivos da repressão, descobri que em 1977 toda minha documentação na (fábrica de caminhões) Scania, que são informações privadas, havia sido entregue pela empresa à seccional do Deops no ABC”, afirma Augusto Portugal, um dos dirigentes das greves do ABC em 1979/1980 e, atualmente, membro da Associação dos Metalúrgicos Anistiados. “O fato é atestado pela declaração de recebimento do delegado, identificando funcionários da Scania que entregaram os papéis.”

Informações privadas

Portugal usa seu próprio caso como exemplo da intensa articulação dos empresários com os órgãos de repressão. O sindicalista lembra que mais de 400 trabalhadores tiveram seus dados funcionais – inclusive seus endereços, locais e horários de trabalho – repassados ilegalmente para o regime. 

“Por isso, devemos exigir à Comissão Nacional da Verdade (CNV) a identificação detalhada das empresas que colaboraram com a ditadura”, propõe, lembrando que, durante a greve dos metalúrgicos do ABC os helicópteros militares enviados para reprimir os trabalhadores tiveram autorização para pousar no pátio da Volkswagen.

“Recentemente tivemos provas cabais de que membros da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) frequentavam a sede do Deops”, afirma Luiz Carlos Prates, dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos e da CSP-Conlutas. Mancha, como é conhecido, acredita ser necessário acabar de uma vez por todas com os aparatos da repressão política e empresarial. “Os métodos utilizados na época estão mais sofisticados hoje em dia. Os departamentos de recursos humanos fazem relatórios muito semelhantes aos do Deops para justificar demissões.”

Como exemplo, Mancha citou seu desligamento da General Motors, em 1996. “Quando peguei o processo, vi que as acusações contra mim eram as mesmas que sofria durante a ditadura: comunista, infiltrado, organizador de assembleias”, anota. “Tais prática persistem porque as empresas nunca foram penalizadas pelo que fizeram durante a repressão. A falta de liberdade na fábrica e o sistema de vigilância ainda são uma realidade.”

Augusto Portugal frisou em vários momentos que o golpe contra o presidente João Goulart, em 1964, não foi apenas militar. “Foi também um golpe classista dos empresários contra os trabalhadores que se organizavam cada vez mais”, define. “A verdadeira parceria público-privada das empresas e da ditadura se destinava à perseguição e repressão da classe operária.”

Modelo de desenvolvimento

A tese é corroborada pela secretária nacional de Direitos Humanos e Cidadania da Força Sindical, Ruth Coelho Monteiro. “O objetivo maior do golpe foi acabar com as conquistas, o avanço da autonomia sindical e da luta dos trabalhadores”, insiste. “Tanto que até hoje não conseguimos recuperar as condições que havia antes de 1964, como a liberdade de organização dentro das empresas. Naquela época já havia delegados sindicais. A massa salarial foi muito reduzida.”

De acordo com Ruth, a conspiração liderada pelos militares abriu espaço para a implantação de um modelo de desenvolvimento no país essencialmente diferente do que vinha sendo levado a cabo pelo governo Jango. 

“Se não revirarmos essa história, corremos vários riscos”, diz. “A verdade vai auxiliar na luta que os trabalhadores conduzem atualmente. Não basta o Estado indenizar e se desculpar se a reparação não chegar também às empresas, que foram coniventes e coagentes da ditadura. Sem a participação delas, a repressão não teria uma série de informações.”

O tom da audiência foi o de que as empresas também devem ser punidas pelo que fizeram. E devem trazer seus arquivos a público. 

“Avançamos em transparência, com a Lei de Acesso à Informação, mas ainda não conseguimos chegar nem perto da transparência das empresas. São intocáveis”, lembra Ruth. “Isso tem de mudar. A empresa tem uma função social e deve responder à sociedade. Agora, devem dizer por que perseguiram e demitiram seus empregados.”