EXPLORAÇÃO NA DOR

Privatização dos cemitérios em São Paulo: assédio das funerárias durante o luto e valores abusivos

O prefeito Ricardo Nunes (MDB) prometeu bons serviços, que incluíam até chuva de pétalas. Na realidade, as empresas privadas coagem as pessoas a comprar caixões e serviços mais caros, e acabam se endividando. Há velórios e sepultamentos que chegam a custar R$ 77 mil

Parzeus/Wikimedia Commons
Parzeus/Wikimedia Commons
Privatização colocou os cemitários na rota dos artigos de luxo da cidade

Brasil de Fato – No dia 6 de março de 2023, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), chegou entusiasmado para a coletiva de imprensa em que apresentaria as quatro empresas responsáveis pela administração dos 22 cemitérios da capital paulista até 2048: Velar SP, Consolare, Grupo Cortel e Maya.

Em seu discurso, o prefeito afirmou: “A gente quer fazer com que a concorrência entre elas possa gerar o bom serviço, o bom atendimento”. Disse ainda que atuaria “fortemente com qualquer tipo de reclamação para que a gente possa ter as ações muito rápidas”.

Ainda durante a coletiva de imprensa, as empresas prometeram serviços não essenciais aos clientes do sistema funerário da capital paulista, como hologramas, wi-fi gratuito, limusine para o cortejo fúnebre, música ao vivo nos velórios, projeção de imagens nas paredes e chuva de pétalas.

Um ano depois da privatização, as empresas ainda não entregaram o pacote de supérfluos. Pior, são acusadas de explorar a vulnerabilidade de pessoas enlutadas, que não conseguem negociar condições de pagamento enquanto lidam com a perda de um parente.

Após a morte do irmão em 17 de janeiro deste ano, a trabalhadora autônoma Erica Maria Maranhão da Silva começou o calvário para garantir o enterro e velório.

A intenção da família era ter acesso à gratuidade ou um valor acessível, através do serviço social. Os benefícios estão previstos em lei, mas é preciso que o registro da pessoa que morreu esteja ativo no Cadastro Único (CadÚnico).

No entanto, um levantamento feito pelo programa Polos de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com dados de setembro do ano passado, mostra que, das 27 capitais, incluindo Brasília, o município de São Paulo está em 26º lugar no ranking da taxa de atualização cadastral, ficando na frente apenas de Boa Vista, capital de Roraima.  

O índice paulistano é de 74,8%, com 1.861.122 pessoas inscritas no CadÚnico. Ou seja, 627.009 pessoas deixam de ter acesso a benefícios por falta de atualização. 

Quando Erica chegou na Agência Consolação da Consolare, a ideia de acessar o serviço social ruiu. Ela conta que o irmão, que estava desempregado, era um dos moradores da cidade que não tinha o registro atualizado no CadÚnico. Dessa forma, ela teria que pagar pelo serviço funerário. Neste momento, ela conta que os vendedores da empresa tentaram fazê-la aceitar mais serviços do que podia arcar.

“Eu me senti (coagida). Na hora que a gente estava lá, todo mundo em desespero e chorando, não tem opção de fazer de outra forma. A gente tem que se virar. Ela falou que se não pagasse caixão, meu irmão seria enterrado como indigente. Então, juntamos todo mundo e pagamos”, explicou Erica.

Outra cliente da Consolare, que pediu para não ser identificada, afirma que foi “enganada” na hora de comprar o caixão na agência de Santana. “Eu queria o mais barato, que era de um material horrível, mas eu podia pagar, custava R$ 1.500. Porém, o vendedor me dizia que aquele caixão era somente para serviço social e eu tive que comprar outro, de R$ 2.800, muito contrariada e desgastada, mas precisava enterrar meu marido. Me disseram que era o mais barato.”

Um trabalhador do sistema funerário falou com o Brasil de Fato, também em condição de anonimato, e afirmou que os vendedores são orientados a “empurrar” os caixões e serviços mais caros até o cliente ceder à pressão.

“No cemitério da Quarta Parada [administrado pela Consolare], por exemplo, os caixões caros estão expostos. Os caixões mais em conta estão atrás de uma porta. Mas eles vão tentar te empurrar sempre um material mais caro”, contou.

Foi o que aconteceu com Erica. “Me senti pressionada e lesada”, conta. “Eu tive que pegar cartão de crédito emprestado para parcelar. A gente é obrigado, vai deixar um irmão da gente ser enterrado como indigente? Não vai deixar”, finalizou.

Brasil de Fato teve acesso a notas fiscais que mostram os valores pagos em serviços funerários em São Paulo. Uma chama a atenção. O pai de um bebê, que morreu após o parto e tinha menos de 50 centímetros de cumprimento, contratou na agência da Consolare da Vila Mariana, na zona sul da capital, transporte do corpo, velório e cremação em Rio Claro, interior do estado, por R$ 9.346.

Outros valores de notas fiscais mostram que o serviço funerário em São Paulo pode ter entrado na rota dos artigos de luxo. Há casos de velórios e sepultamentos que chegam a custar R$ 77 mil.

João Batista Gomes, do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep), que representa a categoria dos agentes sepultadores, afirma que tem recebido denúncias “com frequência” sobre os abusos cometidos pelas agências funerárias na busca por mais lucro.

“A fiscalização feita pela SP Regula é inócua diante da situação que temos em São Paulo. A pessoa vai contratar o serviço de transporte, velório ou sepultamento, mas sem informação. Os vendedores partem para o ataque, porque são empresas e querem vender produtos, e esses vendedores querem bater metas”, critica Gomes.

“Essas quatro empresas montaram um cartel em São Paulo e eles acabam extorquindo a população. A privatização de São Paulo é um desastre. A comercialização da morte é muito triste, as famílias estão fragilizadas e acabam sendo induzidos ao erro. Privatizar o serviço funerário foi um erro”, defende o sindicalista.

Procurada, a Prefeitura de São Paulo disse que “a fiscalização dos serviços e atendimentos é feita periodicamente pelos fiscais e assessores da pasta nos 22 cemitérios públicos e agências das concessionárias da cidade. As informações sobre os serviços e valores estão disponíveis no Portal 156. Qualquer irregularidade também pode ser registrada na Ouvidoria Geral do Município (OGM) por meio dos canais de atendimento do 156.”

Leia também:

Gestão de Ricardo Nunes em São Paulo se atrasou nas ações de combate à dengue

Reportagem: Igor Carvalho, repórter da Brasil de Fato