Tragédia anunciada

Prefeitura de São Sebastião acumula condenações por inação em áreas de risco 

Ao longo dos últimos três anos, a Justiça, em 37 sentenças, cobrou urgência da prefeitura para regularizar 52 áreas com deficiências de infraestrutura e risco à população

Rovena Rosa/EBC
Rovena Rosa/EBC
Nos últimos 12 anos, governadores de SP também deixaram de investir em prevenção

São Paulo – Nos últimos três anos, a prefeitura de São Sebastião foi condenada 37 vezes pela Justiça para regularizar ao menos 52 áreas ocupadas nas proximidades de encostas da Serra do Mar, no litoral norte de São Paulo, com deficiências de infraestrutura. De acordo com reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, faltaram ações básicas da administração municipal para reduzir os riscos em áreas ocupadas. Uma delas na Vila Sahy, local com o maior número de vítimas dos deslizamentos provocados pelas fortes chuvas que atingiram a região no final de semana. 

Segundo o último balanço da Defesa Civil Estadual, até a manhã desta quinta-feira (23), o número de vidas perdidas era de 48. Foram 47 mortes em São Sebastião – sendo 30 na Vila Sahy – e uma em Ubatuba. 

Nas sentenças, juízes destacam que, nas últimas décadas, houve “omissão histórica” das gestões municipais que agiram com “descaso” em relação aos direitos básicos. As decisões também colocam em dúvida o argumento da gestão municipal de São Sebastião de que faltariam recursos para atender a população em áreas de risco.

“Está claro que os moradores dos assentamentos irregulares não vivem em boas condições. Habitam locais inadequados, sem mínima estrutura. Não são beneficiados com serviços públicos indispensáveis. Submetem-se a risco de enchentes e deslizamentos”, aponta uma das sentenças citadas pelo jornal. 

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A falta de regularização

Tem processo em curso há pelo menos 27 anos, quando o Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente no Litoral Norte do Ministério Público de São Paulo passou a apurar irregularidades decorrentes da ocupação desordenada. A fiscalização da prefeitura passou também ser questionada.

Ao todo, 43 ações foram movidas contra o município para a regularização de 52 áreas em risco. De acordo com o MP, a prefeitura não tem “qualquer política efetiva, série e comprometida com a regularização fundiária das áreas ocupadas irregularmente, seja da população de baixa renda ou não”. 

Em 2009, a promotoria e o município firmaram Temos de Ajustamento de Conduta (TACs) para que São Sebastião se programasse financeiramente e iniciasse a regularização. Quase 10 anos depois, em 2018, a prefeitura, já sob a atual gestão, de Felipe Augusto (PSDB), editou um programa de regularização fundiária. Mas, depois, conforme mostra a reportagem, a gestão tucana pouco avançou na proposta, levando o MP a ajuizar outras dezenas de ações. 

“O município não mostrou disposição política para cumprir deveres constitucionais de ordenar corretamente o desenvolvimento territorial urbano e garantir uma vida urbana sustentável aos seus habitantes”, argumentou os promotores em petição em 2021.

Nas ações, o MP também destaca que as áreas reúnem majoritariamente uma população de baixa renda e de alta vulnerabilidade social, em parte atraída pela demanda de mão de obra gerada pela exploração do pré-sal e a valorização turística da região. 

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História da Vila Sahy

A área mais afetada pelos deslizamentos, a Vila Sahy, por exemplo, surgiu no fim dos anos 1980, com a ocupação de migrantes nordestinos em busca de oportunidades de trabalho na região. Ela está localizada na costa sul do bairro Barra do Sahy, entre Juquehy e Praia da Baleia.

São pelo menos 648 imóveis nos quais residem 779 famílias em moradias simples e próximas à serra construídas em uma área de 11 hectares. Os moradores trabalham principalmente em condomínios de alto padrão e nos hotéis da região, ou como ambulantes. 

Em uma ação de 2021, os promotores Alfredo Luis Portes e Tadeu Salgado Ivahy chegaram a apontar que a manutenção da Vila Sahy nessa configuração seria “uma verdadeira tragédia anunciada”. A petição foi uma das que levaram à condenação a prefeitura de São Sebastião. Em fevereiro de 2022, a Justiça reconheceu em primeira instância “clara omissão do ente público” por não agir “para evitar o adensamento populacional” nem “solucionar as desconformidades” da área ocupada. 

O próprio município reconhece que ao menos 7,1 mil famílias vivem em imóveis que precisam de regularização. Isso representa cerca de 25% dos 31,1 mil domicílios da cidade, conforme dados de 2020 da Fundação Seade. 

Sem investimentos estaduais

Um levantamento divulgado nesta quinta-feira (23) pela GloboNews mostra, contudo, que faltou atuação também do governo de São Paulo. Entre 2011 e 2022, as diferentes gestões que comandaram o estado deixaram de investir toda a verba aprovada para prevenção de desastres naturais. No período, mais de R$ 10,6 bilhões foram destinados à área. Mas os últimos quatro gestores investiram R$ 6,9 bilhões. O equivalente a 65% do total, segundo dados da Execução Orçamentária, disponibilizados pela Secretaria Estadual da Fazenda e Planejamento. 

Os recursos previstos serviriam para obras e ações para evitar tragédias como a ocorrida neste final de semana no litoral norte paulista. O volume de chuvas ultrapassou os 600 milímetros, o que é considerado um “evento climático extremo”.

Em menos de 24 horas, choveu mais do que em dois meses. O índice de chuva ainda foi o maior já registrado no Brasil em um curto período. A situação na região segue instável e a previsão de um novo temporal na região aumenta o risco de desabamento e deslizamentos, já que o solo está encharcado. 

Além dos mortos, quase 2.500 pessoas estão desabrigadas e há ainda mais de 40 desaparecidos. Os trabalhos de busca entraram no quinto dia hoje, com operações especiais em bairros da costa sul de São Sebastião, como a Vila Sahy e Juquehy. 

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