Questão humanitária

‘Ouvir denúncias de tortura nos presídios é quebrar esse ciclo de violência’

Pelo sétimo dia, Rio Grande do Norte registra novos ataques criminosos. Facções usam violência para denunciar violações cometidas pelo Estado que não são escutadas de outra forma, diz pesquisadora

Arquivo EBC
Arquivo EBC
"É um tiro no pé (da facção), mas eu vejo que é uma forma de tentar num grito de ódio injustificável, trágico que prejudica a população, fazer com que as denúncias deles sejam ouvidas"

São Paulo – Pelo sétimo dia seguido, o Rio Grande do Norte registrou novos ataques criminosos entre a noite de domingo (19) e a madrugada desta segunda-feira (20). A onda de violência que aterroriza o estado seguiu com casos em Natal e cidades do interior do estado. Balanço divulgado pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Sesed) no domingo contabilizava ao menos 273 ações contra a população, prédios públicos e comércios desde a última terça (14). 

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, foi à capital potiguar ontem, para acompanhar as ações da Força Nacional no combate aos atentados criminosos. O governo federal já determinou o envio de mais de 600 agentes da Força Nacional e de forças federais em apoio às tropas policiais do Estado. À imprensa, o ministro destacou que o governo dará apoio financeiro para melhoras no sistema prisional potiguar. De acordo com Dino, o Rio Grande do Norte será uma prioridade nacional sobre o tema da segurança pública. 

Ao todo, a União já investiu mais de R$ 5 milhões desde o início dos ataques. A iniciativa de reestruturação do sistema penitenciário é bem avaliada pela antropóloga, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Juliana Gonçalves Melo. De acordo com a especialista, é importante o governo federal e estadual atuarem efetivamente sobre essa questão, uma vez que a onda de violência local “não é uma novidade”. 

Denúncias de tortura sem eco

Em entrevista ao Jornal Brasil Atual na manhã de hoje, Juliana apontou que a situação é uma consequência do descaso com que as autoridades, há anos, tratam as pessoas encarceradas. Desde 2017 acompanhando as famílias de custodiados, ela explica que, embora esses grupos criminosos “usem da violência como idioma, o que é injustificável, eles estão demandando que denúncias de violações gravíssimas sejam apuradas, investigadas e coibidas de forma eficaz”. 

Ainda segundo a pesquisadora, o Massacre de Alcaçuz, que aconteceu em janeiro de 2017 no maior presídio do Rio Grande do Norte, foi um momento importante para compreender o que ocorre hoje nos presídios do estado. Naquele levante, 27 pessoas foram mortas na unidade prisional, o que provocou uma onda de violência também nas ruas. Juliana lembra que a matança levou a um processo de endurecimento do sistema prisional em relação a algumas regras de gestão prisional.

“Algumas coisas positivas foram feitas, como a reforma (do prédio). Alcaçuz era considerado, por exemplo, uma prisão ‘queijo suíço’ porque se fugia muito fácil de lá, se falava de compras de fuga, celulares. Hoje não se tem essa realidade, muito dinheiro foi investido. Houve uma ampliação grande do número de policiais penais, então tivemos esse processo. Mas, ao mesmo tempo, paralelamente, teve um regime de endurecimento que é desnecessário. As famílias desde 2017 denunciam sistematicamente práticas de tortura”, observa. 

Combater o crime organizado

“Eu estou falando de práticas como espancamento, enforcamentos, choques, uma pessoa com tuberculose colocada em uma cela em que as pessoas não estão doentes para que todas sejam contaminadas. A família entrega uma escova de dente, uma lâmina de barbear e isso não chega. Então 38 pessoas em uma cela têm que dividir a mesma escova de dente. A família também é maltratada. Desde 2017, as visitas íntimas foram suspensas. Não há uma previsão legal para isso, mas em vários estados brasileiros essa é uma prática que ocorre. A família é um apaziguador, ela diminui a tensão no ‘sistema'”, explica Juliana. 

A pesquisadora acrescenta que denúncias são feitas sistematicamente desde então em atos pacíficos, como cultos religiosos, passeatas e mesmo em órgãos públicos responsáveis pela fiscalização. “Mas isso não ecoa. E com esses ataques, isso ecoa”, lamenta.

As ações criminosas, contudo, são negativas para as próprias facções que, ela acredita, que serão sufocadas apesar da extensão da violência. “É um tiro no pé de certa forma, mas eu vejo que é uma forma de tentar, num grito de ódio (…) que prejudica a população, fazer com que essas denúncias sejam ouvidas”. 

Regalias?

Juliana completa que ouvir essas denúncias “não é fortalecer o crime organizado, a gente enfraquece o crime organizado”, ressalta. A pesquisadora adverte que a atual situação de violações no cárcere no país, com a terceira maior população do mundo, que fortalece o crime organizado. 

“Está sendo passada essa ideia de que eles estão lutando por regalias. (…) Numa cela com 40 pessoas, relativizando esse padrão 6, você tem todas as pessoas com hematomas e marcas de bala de borracha, ou as duas coisas. Você tem uma comida que chega já apodrecida e eles não têm outra forma de conseguir alimento, a não ser aquele que já chega apodrecido. São coisas muito sérias e que a população vê como regalia. Mas isso é dignidade e sobrevivência”, rebate a professora.

“O sistema prisional brasileiro é marcado por violações, mas tirar esse véu é importante para um governo mais fortalecido em sua base humanista. E a eleição do atual presidente foi marcada por muita esperança dessa base humanista. Escutar as demandas dos presos e investigá-las não significa passar a mão na facção, mas enfraquecê-la, quebrar esse ciclo de violência”, adverte Juliana Melo. 

Saiba mais na entrevista completa