OEA condena Brasil por impunidade em morte de sem-terra no Paraná em 1998

Darci Frigo, da Terra de Direitos, considera que o caso mostra como é falho o sistema judicial brasileiro (Foto: Everson Bressan. AE Notícias) O Estado brasileiro foi mais uma vez […]

Darci Frigo, da Terra de Direitos, considera que o caso mostra como é falho o sistema judicial brasileiro (Foto: Everson Bressan. AE Notícias)

O Estado brasileiro foi mais uma vez condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) pelo assassinato de um integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) no Paraná, durante o governo de Jaime Lerner. Novamente, o caso envolve a juíza Elizabeth Khater. Desta vez, o Brasil foi considerado culpado pelos crimes de violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial no caso do assassinato do agricultor Sétimo Garibaldi, em Querência do Norte.

Esta é a terceira condenação do Brasil na OEA, e a segunda que envolve crimes contra trabalhadores do MST no Paraná durante o governo Lerner. O outro caso envolve a realização ilegal de escutas telefônicas contra integrantes de associações de trabalhadores ligados ao MST. Elizabeth Khater também está envolvida nas irregularidades, que ficaram impunes. O primeiro caso pelo qual o Brasil foi condenado ocorreu em 2006, com tortura e assassinato de um deficiente mental no Ceará.

A nova condenação é fruto do assassinato cometido durante desocupação ilegal realizada durante a madrugada de 27 de novembro de 1998. Vinte integrantes de uma milícia da região entraram no acampamento do MST na Fazenda São Francisco para fazer o “despejo extrajudicial” dos agricultores. Armados e encapuzados, eles se apresentaram como policiais e, durante a ação, atiraram na perna de Sétimo Garibaldi que, apesar de socorrido por seu filho, Vanderlei Garibaldi, morreu a caminho do hospital.

“Acordei com o barulho de caminhões, caminhonetes e carros chegando ao acampamento. Junto com minha esposa e filha, me escondi no estábulo. Começaram os tiros e os gritos dos pistoleiros para que saíssemos das barracas e deitássemos no chão. Neste momento, um integrante da milícia chegou correndo afirmando que algo havia saído errado — eles haviam baleado meu pai”, contou Vanderlei.

Segundo o coordenador executivo da ONG Terra de Direitos, Darci Frigo, os integrantes da milícia deixaram o local às pressas, e a polícia foi chamada pelos agricultores. “Os policiais encontraram Ailton Lobato (apontado como integrante da milícia, que teria sido contratada pelo fazendeiro Morival Favoreto) saindo da fazenda. Lobato estava com um revólver não registrado e com um cartucho deflagrado, foi encaminhado a delegacia, mas seu pedido de prisão preventiva foi revogado”, disse.

“O caso foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA em 2003 porque se esgotaram todos os recursos internos possíveis para que pudesse ser resolvido e foi comprovada a demora excessiva por parte das autoridades na responsabilização dos agentes e na reparação das vítimas”, conforme explicou nesta segunda-feira (9), em Curitiba, a diretora executiva da ONG Justiça Global, Andressa Caldas.

Andressa afirmou que houve “irregularidades e erros” no decorrer do inquérito policial. “Entre eles, faltou ouvir testemunhas indispensáveis, como o filho de Sétimo, e sumiram provas, como a arma apreendida com o capataz, que não passou por perícia balística e depois desapareceu na comarca. Assim, várias contradições não foram apuradas. O pedido de arquivamento do inquérito, sem qualquer fundamentação e de forma contrária às provas constantes nos autos, foi deferido pela juiza Elisabeth Khater”.

A Comissão da OEA recomendou ao Estado brasileiro a investigação do caso. Ela nunca foi realizada, entretanto. Por isso, em 2007 o processo foi encaminhado a Corte Interamericana de Direitos Humanos, instância máxima da OEA. Em abril deste ano, em Santiago (Chile), houve o julgamento, em que o Brasil foi condenado, por unanimidade, por deixar de punir os responsáveis pelo assassinato de Sétimo Garibaldi e pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial.

A Corte Interamericana argumenta que “as autoridades estatais não atuaram com a devida diligência no inquérito (…), o qual, ademais, excedeu um prazo razoável”. Diz ainda que “o Estado deve conduzir eficazmente e dentro de um prazo razoável o inquérito e qualquer processo que chegar a abrir, como consequência deste, para identificar, julgar e, eventualmente, sancionar os autores da morte do senhor Garibaldi”, além de “investigar e, se for o caso, sancionar as eventuais faltas funcionais nas quais poderiam ter incorrido os funcionários públicos a cardo do inquérito”.

“A Corte não pode deixar de expressar sua preocupação pelas graves falhas e demoras no inquérito do presente caso, que afetaram vítimas que pertencem a um grupo considerado vulnerável. Como já foi manifestado reiteradamente por este Tribunal, a impunidade propicia a repetição crônica das violações dos direitos humanos”, diz a sentença, divulgada nesta segunda-feira (9).

A decisão determina ao Estado brasileiro a publicação de trechos da sentença no Diário Oficial e em jornais de grande circulação no País e no Paraná. Também deve ser publicada, durante um ano, a íntegra da sentença nos sites dos governos federal e do Paraná. Além disso, o Brasil deve indenizar a viúva e os filhos de Sétimo Garibaldi por danos morais e materiais e por custos com o processo judicial. O valor da indenização, conforme Vanderlei, é de 500 mil dólares.

O inquérito do caso de Sétimo Garibaldi foi reaberto na Comarca de Loanda, a pedido do Ministério Público, nove dias antes da audiência ocorrida no Chile. “Isso mostra que a abertura do caso era apenas para dar uma satisfação às autoridades internacionais”, criticou Andressa. Segundo ela, algumas testemunhas já começaram a ser ouvidas.

FALHA – Para Darci Frigo, o caso mostra que é falho o sistema judiciário brasileiro. “Nos casos de violação de direitos humanos ou de violência grave, muitas vezes apenas um lado da investigação funciona. Por isso, a possibilidade de se chegar a bons termos requer uma vigilância extrema das vítimas e das organizações do sistema de Justiça, para que as autoridades possam levar a cabo as investigações”, criticou.

“O Brasil vai sofrer outras condenações se não democratizar o sistema judiciário. É preciso que as autoridades tomem medidas de compor, por exemplo, uma comissão que não tenha pessoas envolvidas com os poderes locais, e que possa, de forma imparcial, investigar os agentes públicos, sejam policiais, do Ministério Público, do Judiciário, e suas articulações com agentes privados, com os contratantes das milícias na região Noroeste do Paraná, especialmente a União Democrática Ruralista (UDR)”, disse Frigo.

CONTEXTO – O crime aconteceu durante o governo de Jaime Lerner. “Naquela época, o Paraná viveu um processo violento de perseguição aos trabalhadores rurais e aos movimentos sociais”, segundo Andressa. “Autoridades e ruralistas se uniram em uma campanha que resultou em um aumento dos índices de violência e que, com o uso da máquina do Estado, possibilitou atos de espionagem e criminalização contra trabalhadores organizados”, falou Frigo.

No documento divulgado nesta segunda-feira (9), os integrantes da Justiça Global e da Terra de Direitos lembram que Lerner foi chamado de “Arquiteto da Violência”. “Durante a ‘Era Lerner’, entre 1994 e 2002, foram assassinados 16 trabalhadores rurais no Estado, além de consumadas 516 prisões arbitrárias. As mortes repercutiram internacionalmente, e Lerner passou a ser chamado de arquiteto da violência, em referência a sua formação de urbanista e arquiteto. Além dos assassinatos, a Comissão Pastoral da Terra registrou na época 31 tentativas de homicídio, 49 ameaças de morte, sete casos de tortura e 325 vítimas de lesões corporais em consquencia de conflitos por terra”.

Para Andressa, uma sentença como a do caso de Sétimo Garibaldi pode servir como impulso para que o Brasil mude a forma como trata crimes cometidos contra trabalhadores rurais. “Neste momento em que há uma nova onda de organização de movimentos sociais, é importante que o Brasil dê o recado às autoridades judiciais e policiais de que estes crimes precisam ser investigados e, concomitante a isso, seja realizada a reforma agrária”, afirmou.