Atento aos outros

Mia Couto: ‘Estamos à espera de que o Brasil regresse a essa plenitude que foi roubada’

Em conversa no BDF Entrevista, o escritor fala sobre o fechamento das fronteiras na África, seu novo livro e o Brasil

Brasil de Fato/Reprodução
Brasil de Fato/Reprodução
Neste ano, o vencedor do Prêmio Camões de 2013 lança no Brasil seu romance "O Mapeador de Ausências"

Brasil de Fato – Mia Couto se diz um mediador, alguém que “coloca em diálogo, os diversos mundos que existem em Moçambique”. Tem sido esta a sua tarefa há quase 30 anos, quando lançou Terra Sonâmbula, seu primeiro romance e um dos mais importantes da literatura africana.

Neste ano, o vencedor do Prêmio Camões de 2013 lança no Brasil O Mapeador de Ausências, um livro de caráter biográfico, que representa uma volta do escritor à sua cidade natal, Beira, na região central do país.

A volta que deveria ser um resgate de suas memórias, se tornou uma homenagem aos seus pais, Fernando Couto e Maria de Jesus.

“A certa altura, eu comecei a perceber, enquanto construía o livro, que não era a cidade, era o meu pai e a minha mãe, que em um ambiente colonial e muito agressivo, de uma violência enorme, do ponto de vista social, racial, formaram o meu ser, a minha capacidade de estar atento aos outros, meu sentimento de pertencimento à Moçambique, à uma luta para derrubar esse sistema colonial. Tudo isso eu devo aos meus pais”.

Pandemia e África

Além do novo romance – e um outro livro de contos, que deverá ser lançado em breve – outras questões têm afligido o escritor. Biólogo de formação, Couto participou ativamente dos esforços de Moçambique para frear a pandemia de covid-19 no país.

Desde o início do avanço da doença, foram 154 mil casos diagnosticados e 1.944 mortes no país.

Com a descoberta da nova variante, “supostamente sul-africana”, ômicron, a primeira medida de países europeus e do norte global foi vetar voos e fechar fronteiras com as nações da África Austral, os países ao sul do continente africano.

Segundo Mia Couto, a medida é “completamente injustificada, uma coisa que não tem fundamento científico nenhum”, afirma.

“Era uma decisão mais política do que outra coisa e que penalizava, principalmente a África do Sul, mas todos os outros países desta região da África Austral. Quando nós sabemos que esses muros que se erguiam, essas barreiras que preveniam a existência de viagens, não iriam ter quase nenhum efeito naquilo que seria o controle, a contenção de alguma coisa que nem sabíamos onde havia sido originada, se na África do Sul ou em outro local, mas até agora ainda falta provar isso”.

No final de novembro, amostras colhidas na Holanda já mostravam a presença da nova variante em solo europeu, muito antes do registro e descobrimento da nova cepa por cientistas sul-africanos.

Situação agravada

Apesar do baixo índice de vacinação no continente (apenas 6,6% da população dos 50 países está imunizada), a região nunca teve grandes surtos da doença, ao contrário dos continentes americano e europeu. Mesmo assim, explica Couto, a África nunca barrou o trânsito entre os países.

“A África podia ter feito o inverso, quando o centro da epidemia hoje está na Europa e nunca nos ocorreu, a nós africanos, parar esse movimento de gente que vinha da Europa ou que vai para a Europa”, diz. “A medida agrava a situação já muito carente desses países, que dependem muito do turismo e da circulação de bens e passageiros”, completa.

Na conversa gravada em 2 de dezembro, para o BdF Entrevista, o escritor ainda fala sobre o Prêmio Camões entregue à moçambicana Paulina Chiziane, como descobriu a literatura de João Guimarães Rosa, revisita a memória e fala de sua paixão pelo Brasil, apesar da “atitude do próprio presidente da República, que desvalorizou, negou a covid-19 e essa posição é realmente criminosa”.

“Quero dar um abraço no Brasil, o Brasil que eu aprendi a amar muito. Eu aprendi a conhecer melhor o meu próprio país visitando o Brasil, e o Brasil que deu tanto como contribuição cultural, musical. Vocês não podem imaginar o quanto Moçambique aprendeu a olhar para si próprio e a amar melhor o mundo e a vida por via do Brasil. Portanto estamos à espera de que o Brasil regresse a essa plenitude que foi roubada agora”.

Confira a entrevista:


Leia a íntegra da entrevista de Mia Couto ao Brasil de Fato