Literatura

Lançamento ‘desadormece’ personagens marginais de Mia Couto

Primeiro livro de contos do escritor moçambicano, Vozes Anoitecidas, de 1986, é lançado no Brasil

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“O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes”, diz Mia Couto em Vozes Anoitecidas, primeiro livro de contos publicado pelo escritor moçambicano pela primeira vez em 1986.

A obra que foi lançada nesta semana no Brasil, pela Companhia das Letras, apresenta personagens marginais da cultura moçambicana e flerta com a fronteira entre a realidade e ficção. “Estas estórias desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecida de verdade, mas que me foi contada como se tivesse ocorrido na outra margem do mundo. Na travessia dessa fronteira de sombra, escutei vozes que vazaram o sol. Outras foram asas no meu voo de escrever. A umas e a outras dedico este desejo de contar e de inventar.”

Como é habitual em seus livros (por mais que não tenha necessariamente este objetivo), Mia Couto desconstrói o estereótipo africano e fortalece os laços entre o registro oral e o escrito. Lê-lo é como escutar alguém contar uma história que, mesmo que tenha ares fantásticos, continua sendo crível.

Antes de lançar Vozes Anoitecidas, o biólogo Mia Couto era conhecido como jornalista e poeta e foi este livro que o projetou para o mundo. Nos doze pequenos contos reunidos nesta obra personagens esfarrapados narram histórias que transitam levemente nas fronteiras que separam o absurdo, o mágico e o factual.

No conto A Fogueira é quase possível escutar a dor dos personagens. A mulher que olha para o marido e percebe que ele estava cada vez menor. “É uma sombra. Sombra, sim. Mas só da alma porque o corpo quase que não tinha.” A alma daquele homem também reduzia de tamanho e ficava cada vez mais mesquinha e opressora, ao ponto de sugerir à mulher que começasse desde já a fazer sua cova, na qual acabaria, ele mesmo, sendo enterrado.

Em As Baleias de Quissico, o sonho e a fantasia são o alimento de Jossias, que espera que um animal marinho chegue com a boca cheia de amendoim, carne, azeite de oliva e bacalhau. Mas o que é melhor: imaginar que o que aportou ali silenciosamente é uma baleia, ou prever que aquele enorme mostro é, na verdade, um submarino repleto de armamentos ilegais?

O texto de Mia Couto traz ao leitor um questionamento: serão estas narrativas absurdas ou seria a própria realidade destituída de sentido? O ponto de partida da literatura do escritor moçambicano parece ser essa perplexidade que ele divide com o leitor tão delicadamente, por mais que suas histórias carreguem as dores de um passado de guerra e dominação.

 

Serviço

Vozes Anoitecidas

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 152

Tiragem da versão impressa: 8.000 exemplares

Preço: R$ 35 e R$ 24,50 (e-book)