Tristeza e esperança

Mia Couto sobre o Brasil: ‘Ausência de políticas ou políticas erradas, não sei o que é pior’

Escritor defende o respeito à ciência. Para ele, certa visão “apocalíptica” dá força à extrema direita e a populistas

Reprodução Facebook
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Sobre o novo livro: 'Ele (pai) nos ensinou coisas que só a poesia pode ensinar. Como ele dava importância às pessoas que podemos chamar aparentemente pequenas, invisíveis'

São Paulo – Recuperado da covid-19, que contraiu no início do ano, o escritor moçambicano Mia Couto diz sentir “grande tristeza” pelo que se passa no Brasil. Por “ausência de políticas ou políticas erradas, não sei o que é pior”, diz Mia, que participou ontem (10) de Maputo, onde mora, do programa Sempre um Papo, criado há 35 anos por Afonso Borges. O escritor lembra que, ante a covid-19, seu país, mesmo pobre e sem recursos, “tomou seriamente as rédeas da situação, foi capaz de prevenir, criar mecanismos em que a ciência foi um grande conselheiro”.

Ele mesmo, que se diz “mau biólogo”, integra uma comissão científica criada em Moçambique para combater a pandemia. “Enfrentar essa doença não é só um assunto da saúde”, comenta, lembrando o grupo tem também “sociólogo, gente da cultura, do Direito”, além, é claro, dos profissionais diretamente ligados ao problema. “Por causa dessa conduta, que permitiu tomar medidas adequadas, nós nunca tivemos lockdown. (…) Nunca existiu aqui uma situação de confinamento total.” Com 30 milhões de habitantes, o país africano registrou até o momento 707 mortes.

Laços de solidariedade

Afonso pondera se não é necessário ouvir mais, não só o que é conveniente. Mia acrescenta que existe “uma cultura que é muito pouco preparada para conviver com incertezas”. Mas, ao se referir às culturas de raiz africana, ele identifica uma “capacidade de construir laços de solidariedade perante aquilo que é imprevisível, que é o caos, vamos dizer assim, que está fora daquilo que a gente pode controlar”.

Isso também representou um aprendizado pessoal, observa o escritor. “Ter esse convívio sereno com o que não sei, com aquilo que não consigo entender. Acho que esse é um teste importante. Não temos que deixar crescer esse sentimento agora de derrota, essa espécie de luto que partilhamos”, afirma, acrescentando que essa narrativa, que ele chama de “apocalíptica”, já estava presente antes da pandemia. E exige atenção.

Discurso apocalíptico x esperança

Assim, clima, natureza, humanidade, “grandes pilares do nosso mundo”, vêm sendo, segundo ele, “assaltados” por uma visão derrotista. Por isso, Mia considera importante valorizar os “construtores de esperança, gente que é capaz, sem demagogia, sem intenção política partidária, de maneira realmente desinteressada, ser capaz de construir respostas, que são esses laços de solidariedade, pequenas luzes de esperança”.

“Esse discurso apocalíptico dá imensa força à extrema direita, aos populistas, aos que se apresentam como grandes messias, grandes salvadores”, emenda o escritor. “Temos de ter atenção com quanta confiança damos à tristeza.”

Capacidade de resistir

O programa discutiu também o mais recente livro de Mia Couto, , O Mapeador de Ausências (Cia. das Letras). A obra atende a um projeto do escritor de voltar à terra natal, Beira, à infância, um tempo em que ele foi “intensamente feliz”. O autor recorda, então, do ciclone que dois anos atrás devastou sua terra e matou centenas de pessoas. Sobrevoando a cidade, “percebi que havia terra só porque havia copas das árvores. e alguns tetos com pessoas em cima”. A dor em vários níveis. “A minha infância foi submersa. Eu vim à procura de alguma coisa que de repente se dissolveu”, recorda Mia.

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Ao mesmo tempo, ele se sentiu fortalecido pela forma como seus conterrâneos enfrentaram a tragédia. Poucos meses depois, já havia “uma enorme diferença”, casas reerguidas com as próprias mãos. “Havia qualquer coisa que sobrava, uma força, uma crença. essa capacidade de resistir que está presente em todos os povos.” Talvez ainda mais em Moçambique, que resistiu a uma guerra civil que deixou 1 milhão de mortos, e a calamidades naturais.

Mas, segundo ele, o livro, pensado inicialmente com uma celebração de sua terra, era, na verdade, seu pai, o jornalista e também escritor Fernando Couto, que morreu em 2013. “Meu pai que era uma pessoa aparentemente ausente, poeta, tinha um ligação difícil com a realidade. Inscreveu nos três filhos aquilo que nós somos. Ele foi o pilar, o fundamento, nos ensinou coisas que só a poesia pode nos ensinar. Como ele enfrentava o mundo, como ele dava importância às pessoas que podemos chamar aparentemente pequenas, invisíveis. Meu pai foi essa aparente ausência que me deu a grande bússola para eu ser quem sou.”


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