Degradante

Governo paulista ignora acordo e deixa detentos sem produtos de higiene básica

Em março, gasto por pessoa em quatro centros de detenção da capital ficou em R$ 7,06, e apenas dois absorventes e três rolos de papel foram comprados. Defensoria afirma que postura é imoral

Regina de Grammont/ da RBA

Em dia de visita, familiares fazem fila com mantimentos na Penitenciária Feminina de Sant’ana

São Paulo – “Até agora, parece que nada mudou. Se eu não levar um sabonete, meu marido toma banho só com água. Shampoo, pasta de dente, escova, tudo isso depende de mim. Eu precisei ficar um tempo sem vê-lo e, quando fui, ele não tinha nem um sabonete”, conta J.S. (iniciais fictícias), companheira de um interno da Penitenciária Irapuru, próxima a cidade de Presidente Prudente, a 630 quilômetros da capital paulista, onde ela mora com os três filhos. Os gastos com produtos de higiene e roupas para o marido, preso há quatro anos, ficam em R$ 400 mensais. Somam-se ao valor outros R$ 400 gastos com passagem e hospedagem no interior do estado, “sem que eu tome um café na viagem, que leva 10 horas”, relata J.S., que faz bicos em eventos e trabalha como diarista.

Casos como o de J.S. se repetem na maioria das unidades do sistema prisional, uma vez que a Secretaria de Administração Penitenciária do governo de São Paulo segue sem regularizar a entrega de produtos de higiene e vestuário em penitenciárias, mesmo depois de se encerrar o prazo judicial de oito meses para ajustar a distribuição. A omissão desrespeita acordo judicial firmado em agosto do ano passado, quando foi homologado um Termo de Ajustamento de Conduta entre a gestão de Geraldo Alckmin (PSDB), a Defensoria Pública e o Ministério Público Estadual, depois que inspeções em estabelecimentos penais e coleta de relatos de diretores das unidades confirmaram a falta de produtos de necessidade básica nas penitenciárias do estado.

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Dados obtidos pela RBA por meio da Lei de Acesso à Informação indicam que, de fato, a situação pouco mudou. Em março deste ano, o gasto com produtos de higiene, limpeza e vestuário por preso nos Centros de Detenção Provisório Pinheiros I, II, III e IV, na capital paulista, foi de apenas R$ 7,06 por detento, levando em conta a população carcerária divulgada no site da Secretaria de Administração Penitenciária. Na Penitenciária Feminina de Santana, também em São Paulo, o valor ficou em R$ 7,23 por cabeça.

Ainda segundo a planilha enviada à reportagem, foram compradas em março apenas duas cuecas, cada uma no valor de R$ 2,35, cinco bermudas de R$ 8,90 cada e 94 cobertores de R$ 13,96 para os Centros de Detenção Provisória de Pinheiros, que somam 6.762 pessoas. Em relação aos produtos de higiene, no mesmo mês, foram adquiridos apenas 2.140 rolos de papel higiênico, 2.367 escovas de dente e 2.308 barbeadores.

Na Penitenciária Feminina de Santana, com população de 2.565 mulheres, foram compradas 5.090 unidades de absorvente íntimo, ou dois por pessoa, e 7.635 rolos de papel higiênico, ou três por interna. O governo comprou ainda 146 bermudas, calças, camisetas, chinelos e cobertores. Nenhum sutiã ou calcinha foi comprado em março.

O defensor público Marcelo Carneiro Novas ressalta, no entanto, que o total de produtos comprados pode não ser o mesmo que o entregue, porque as unidades podem ter adquirido estoques, por compras feitas em grandes quantidades para reduzir custos. A RBA questionou a Secretaria de Administração Penitenciária sobre o assunto, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.

“O que podemos dizer é que o estado está dando um tiro no pé, porque a pessoa vai sair de lá, mas vai sair endividada e com a vida familiar desorganizada. Por tudo isso, o índice de reincidência não diminui. Para o governo, essa política de arrocho pode até compensar do ponto de vista econômico, mas descompensa a sociedade do ponto de vista moral”, lamenta o defensor.

A planilha de gastos da Secretaria de Administração Penitenciária em 2011, cedida à Defensoria Pública na época da investigação que resultou no acordo judicial, aponta que os gastos anuais com internos em presídios à época eram bastante baixos. No Centro de Detenção Provisória de Pinheiros IV, por exemplo, o gasto médio por preso foi de apenas R$ 15,07 naquele ano. No Centro de Detenção Pinheiros III, o gasto médio anual foi de R$ 18,55 por pessoa e, em Pinheiros II, de R$ 19,62.

Na Penitenciária Feminina de Santana, não foi comprado nenhum pacote de absorvente íntimo ou papel higiênico em 2011, assim como creme dental e escova de dente, apesar de ter havido entrega de produtos adquiridos anteriormente. A unidade prisional comprou apenas detergente, sabão em pó, desinfetante, alvejante, vassoura e rodo. O Estado é obrigado a fornecer “assistência material ao preso” pela Lei Federal de Execução Penal (7.210/84). Além ser um direito adquirido, a entrega de produtos de necessidade básica evita a troca de serviços e favores pessoais por pastas de dente, sabonetes e papel higiênico, o que acaba fortalecendo as facções criminais prisionais.

“A camiseta branca que eles têm que usar, que só pode ser branca, também depende de a gente levar. Se eu não levo para ele uma nova, ele tem que usar a que tiver, esteja suja, rasgada, do jeito que for. Até o sabão em pó para ele lavar as roupas eu tenho que levar, tudo depende dos familiares”, protesta J.S. “Muitos dos presos ficam sem visita pelo custo da viagem ou pela revista vexatória a que a família tem que se submeter. Aí eles acabam fazendo serviços em troca dos produtos de higiene”, completa.

Problema antigo

Em março do ano passado, a SAP já havia publicado uma resolução que estabelecia medidas de padronização para o fornecimento de materiais de higiene e vestuário aos presos, prevendo desde a entrega de roupas íntimas – que também não é padronizada – até enxoval para as internas gestantes. Os itens para bebê chegaram a ser inclusos na relação de produtos de março deste ano, entre eles cobertores, fraldas, sabonete e shampoo, porém nenhuma unidade foi adquirida para a penitenciária feminina de Santana.

Outros itens foram incluídos, como jaleco, esponja, pano de limpeza, balde, colcha, escova de roupas, toalha de rosto e travesseiro mas, dos últimos cinco itens, nenhuma unidade foi adquirida. O órgão não explicou os motivos pelos quais materiais novos na lista, para os quais é improvável que haja estoque, não foram comprados.

Apesar da inclusão de itens, a secretaria também deixou de adquirir produtos que constavam da lista de 2011. Entre eles estão desodorante, antisséptico bucal, blusa de moletom, desinfetante e sabão em pedra.

“Roupas e cobertores são entregues para quem está entrando. Os produtos de higiene, que acabam rápido, os internos dizem que recebem, mas sem periodicidade; uma hora ganham uma coisa, dali dois meses outra. Não é regular”, afirma a coordenadora de gestão da mulher presa da Pastoral Carcerária, Heide Cerneka. “Eu falo com pessoas que estão há 20 anos presas e que têm só uma calcinha e uma camiseta rasgada.”

O defensor público Patrick Cacicedo, que participou do elaboração do Termo de Ajustamento de Conduta com o governo estadual, afirma que a Defensoria Pública passará fiscalizar a entrega dos produtos, e, em caso de não cumprimento, aplicará sanções à secretaria que podem chegar a multas diárias. “Esses dados mostram que nada mudou substancialmente. Parece que eles estão esperando o último momento para regularizar a situação”, disse.

“A obrigação de entrega destes produtos decorre da lei. Não é um favor, é um direito que as pessoas presas têm. Mas, como em outros assuntos relacionados à população carcerária, o Estado onera os familiares”, reclama. “É uma lógica de degradação do ser humano. O que deve ser entregue está longe de ser artigo de luxo: estou falando de papel higiênico, absorvente e blusa de frio. Isso representa a forma como o estado trata os mais vulneráveis.”