Luta antirracista

Gerações de ativistas celebram os 45 anos do Movimento Negro Unificado

No auge da ditadura, centenas de manifestantes negros ocuparam as escadarias do Teatro Municipal de São Paulo em protesto contra a violência racial, dando início ao Movimento Negro Unificado (MNU). “Estar aqui com vocês dá a certeza de que a luta seguirá avançando”, afirmou um dos fundadores

Jesus Carlos/Arquivo
Jesus Carlos/Arquivo
Fundado em 18 de junho de 1978 e lançado em 7 de julho do mesmo ano, em plena ditadura civil-militar, o MNU rompeu com a invisibilidade do racismo estrutural e derrubou o mito da "democracia racial"

São Paulo – No mesmo espaço onde esteve há 20 anos para celebrar duas décadas e meia de história, o Movimento Negro Unificado (MNU) voltou a ser homenageado na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), nesta semana. Mas desta vez, os 45 anos de luta antirracista estão refletidos em um legislativo com maior número de pretos e pardos eleitos em 2022, com 18 representantes em 94 cadeiras.

Um avanço, ainda que não garanta a mesma igualdade racial projetada na população paulista. Até hoje, a maioria dos postos são ocupados por deputados que se declararam brancos (76).

Esse aumento na representatividade, contudo, também é atribuído ao processo histórico do MNU.

No auge da ditadura civil-militar, em 1978, conseguiu romper a invisibilidade do racismo estrutural. E derrubou o mito da “democracia racial” propagado pelo regime de exceção ao reunir centenas de manifestantes negros nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo. O ato era uma resposta à violência racial que acabara de atingir quatro garotos do time de voleibol infantil do Clube de Regatas Tietê. E de tirar a vida do feirante Robson Silveira da Luz, barbaramente torturado e morto pela polícia.

7 de julho até hoje

Naquele dia 7 de julho de 1978 nascia o Movimento Negro Unificado. “Esse ato que fizemos no Municipal estourou no mundo inteiro. Tinha gente que voltava dos Estados Unidos, da Europa, da África e de países aqui da América Latina e falavam ‘achei demais vocês’. Em plena ditadura fazendo manifestações’. Foi uma articulação muito bem feita”, relembra Milton Barbosa, um dos fundadores do MNU e principais coordenadores do ato.

“Os policiais passavam provocando ‘aí só tem prostituta e ladrão’. Mas a ‘negada’ segurou. Não saiu virando carro, quebrando o pau porque tinha garantia de que a manifestação ia estourar no mundo todo. Então foi um negócio maravilhoso, muito parecido com essa atividade que estamos fazendo aqui hoje. Pessoas aqui na maior tranquilidade, mas todas que eu conheço e têm um trabalho de fundamental importância para que as coisas avancem. Tem hora que não é fazer barulho para que as coisas aconteçam, mas aquele trabalho na manha. E estar aqui com vocês dá a certeza de que a luta seguirá avançando”, destacou Miltão, como é conhecido.

Ao lado de José Adão Oliveira, também fundador do MNU, o ativista lembrou, em especial, do início desse processo e da convivência com grandes nomes que aprofundaram a ação revolucionária do movimento. De Florestan Fernandes, por exemplo, a Lélia Gonzalez e Thereza Santos.

“Tivemos convivências incríveis que foram a base que construiu o surgimento e a criação do Movimento Negro Unificado, que trabalhou as lutas e bandeiras da população negra de todo o país, denunciando o racismo, a violência policial, o racismo nos meios de comunicação, na educação, a questão da empregadas domésticas”, listou Miltão.

Legado

Dois anos depois do ato histórico, foi também o MNU que ajudou a garantir a realização do primeiro protesto contra a violência que tinha como alvo gays, lésbicas e travestis. O ato foi realizado pelo grupo Somos, em 13 de julho, também no Municipal.

De lá para cá, o movimento também se aproximou dos trabalhadores e se alinhou a movimentos de esquerda. Mas, infelizmente, “o racismo atrapalhou e muita coisa não rolou”, observou Miltão. “Éramos para viver outro momento, com as coisas mais avançadas. Mas hoje estamos avançando e derrubando essas coisas. E, com certeza, a negada vai dar o norte”, esperançou seu fundador.

Para além dessas conquistas e pautas colocadas, Regina Lucia Santos, ativista há 28 anos do Movimento Negro Unificado e coordenadora em São Paulo, observa a força do povo preto. Para ela, o grande legado do MNU é mostrar “que ser negro é uma força capaz de mudar as estruturas dessa sociedade”. Emocionada, Regina compartilhou ter se tornado outra pessoa pela história construída ao longo desses 45 anos do grupo.

“Porque ser negro é ter sim que lutar contra o capitalismo, o machismo, a LGBTQIA+fobia, a xenofobia, contra a intolerância religiosa, lutar pelo meio ambiente, lutar pelo direito à alimentação. (…) É isso que é ser negro e foi isso que o MNU ensinou nesses anos de luta. Não existe nada mais importante para a população negra do país do que ter a consciência do que se significa ser negro”, afirmou.

Rodrigo Romeo/Alesp
A Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) realizou um ato solene, nesta terça-feira (27), em homenagem ao Movimento Negro Unificado (MNU), que acaba de completar 45 anos

Encontro de gerações na luta

Diante de uma plateia tomada por representantes do movimento de diferentes gerações e regiões do país, a coordenadora também resgatou o ditado iorubá que diz que “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”. Para ela, “a mais acabada noção de ancestralidade” que permite esse encontro de ação. “A luta que Miltão faz há 45 anos, ele não fez em 78. Adão não lutou em 78, lutou em 78 contra a ditadura militar, como eu, mas lutou no ano passado contra o inominável (Jair Bolsonaro)”.

“Lutou pelo reconhecimento da dignidade nos territórios negros e luta todos os dias contra o encarceramento, pela vida das mulheres negras”, seguiu a coordenadora. “E mais, eu luto a minha vida toda pelo bem viver da população desse país e da população que ajudou a construir esse país: a população negra e indígena. E eu só quero que me deixem lutar até o fim. Porque, se os racistas não descansam, nós não temos o direito de descansar. Nós ainda vamos fazer desse país um lugar digno para todos nós vivermos. E é a luta e o povo negro que podem dar esse norte. Porque temos uma visão de mundo onde a felicidade e a festa têm lugar”, justificou Regina.

A fala foi acompanhada com atenção pela codeputada Simone Nascimento, da Bancada Feminista do Psol, responsável pela solenidade na Alesp. Aos 30 anos, a parlamentar, que é também Integrante da coordenação nacional do MNU, explicou ter se filiado ao movimento por entender a luta como um “grande encontro de gerações”. “Em que, enquanto não derrotarmos o racismo, a nossa bandeira permanece sendo a mesma, que é pela verdadeira liberdade”.

Abrir caminhos

“Quando eu acessei o debate sobre o movimento negro, eu fui entender sobre várias organizações e entidades que existiam. E a principal coisa que eu entendi é que nenhuma outra organização negra tinha oferecido uma outra reflexão programática que superasse as bandeiras do MNU. E eu acho pouco generoso que a gente não se proponha a lutar com quem veio antes e que queira sempre recomeçar. Sendo que o nosso principal desafio é combater a fragmentação, as separações. E entender a possibilidade de lutar, fazer sínteses, caminhar lado a lado e construir essa luta unificada”, defendeu Simone.

Apontando para uma lança no auditório da Alesp, o professor e representante do MNU em Santana de Parnaíba (SP), Cláudio Francisco frisou que o empenho de todas essas gerações na luta antirracista é para sermos “lançados na história, abrir caminhos, desbravar e construir a história do povo que verdadeiramente transformou isso aqui em uma nação”.

Ele se descobriu negro aos 9 anos, ao ser perseguido por um segurança em uma loja de vestuário e ouvir da mãe que não era preto. mas que “jogava muita bola na rua e tomava sol”. A fala da mãe fez com que deixasse o esporte “para ver se ser preto doía menos”. Hoje, Cláudio Francisco ensina para a filha a importância da negritude. “Eu quero que a pretice chegue para todo mundo e não desça pelas testas, mas pelas consciências. Pela consciência de pessoas pretas e pela consciência de pessoas não pretas”, desejou o ativista.

Celebrações

Além da homenagem na Alesp, o MNU em São Paulo também terá um baile antirracista aquilombado no centro cultural e quilombo urbano Aparelha Luzia, no centro de São Paulo. O evento ocorre no dia 7 de julho.

Como parte das celebrações, o movimento ocupa o Memorial da Resistência, na capital paulista, para uma programação cultural nos dias 5, 8 e 9 de julho sob o tema “De 10 a 100 anos: Efemérides de memórias e personalidades negras”. A exposição celebra a vida e luta de pessoas e acontecimentos fundamentais para a história do movimento negro no Brasil. A programação completa do museu está disponível aqui. As comemorações seguem até o final do mês quando, no dia 25 de julho, as mulheres negras do MNU também participam do Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.