celebração

Comunidade agroecológica do MST conquista assentamento em Castro, no Paraná

Acordo homologado este mês pôs fim a oito anos de disputas. E trouxe esperança e alegria para 63 famílias sem- terra, que transformaram uma fazenda da União degradada pelo agronegócio em área de produção de alimentos livres de agrotóxicos

Lia Bianchini/BdF
Lia Bianchini/BdF

São Paulo – Após anos de congelamento da reforma agrária no Brasil, acordo conduzido pela Justiça Federal em Ponta Grossa, no Paraná, reacendeu a esperança de 63 famílias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no início de dezembro. Incra, Defensoria Pública da União, Superintendência do Patrimônio da União no Paraná e o Centro de Treinamento para Pecuaristas punham fim a uma disputa que já durava oito anos. O termo seria então homologado no último dia 11. Estava oficializado o Assentamento Maria Rosa do Contestado, em Castro, região dos Campos Gerais do Paraná.

A alegria era tanta que no dia 15 já tinha festança. Mais de 500 pessoas participaram da celebração pela conquista. A comunidade ofereceu churrasco e almoço a centenas de militantes do MST de todo o estado, autoridades federais, estaduais e locais, e aliados e amigos das 63 famílias assentadas. A atividade também marcou o encerramento do encontro estadual do MST na sede da comunidade, a antiga fazenda Capão do Cipó.

O bispo da Arquidiocese de Ponta Grossa, dom Sergio Arthur Braschi, foi homenageado. Ao longo dos oito anos de resistência da comunidade, dom Sérgio celebrou missas no local e esteve junto com lideranças camponesas em reuniões com o governo federal em Brasília, em 2019, período de acirramento das ameaças de despejo.

Fruto da terra

“Isso aqui à nossa frente é muito importante, que é o dom de Deus, que é o fruto da terra, do trabalho e da luta das mãos das mulheres, dos homens que trabalham e produzem para levar para as merendas escolar, para as escolas do município”, afirmou o religioso, sobre a produção de alimentos. “E no tempo da pandemia, quanto alimento foi partilhado, partilhado com amor, foi muito importante para fazer esse alimento chegar às pessoas.”

Dilce Noronha, integrante da direção estadual do MST e moradora do acampamento Chico Mendes, em Matelândia – uma das 83 áreas que lutam pela efetivação da reforma agrária no estado –, falou sobre a conquista do assentamento. “Para o MST, o assentamento Maria Rosa é o reconhecimento desse projeto, que é um projeto de vida que vocês [famílias da comunidade] construíram aqui ao longo desses oito anos. Também não é um projeto de vida só pra vocês, é um projeto de vida para a sociedade como um todo, principalmente para nós da classe trabalhadora do campo e da cidade”, disse, referindo-se à produção de alimentos sem uso de venenos, um pilar da atuação do MST no país.

A área pública da União antes explorada pelo agronegócio de forma ilegal e com uso de agrotóxicos tornou-se um assentamento da reforma agrária com certificação 100% agroecológica. A produção de alimentos saudáveis é a marca da comunidade, conforme Célio Meira, produtor agroecológico, integrante da coordenação da comunidade Maria Rosa e também dirigente estadual do MST. “A nossa cooperativa a partir do acampamento Maria Rosa do Contestado já tem garantia de renda de centenas de famílias castrenses nesse momento, então é um simbolismo muito grande, uma satisfação imensa, imensurável o valor e a conquista que isso representa.”

Em 2016, as famílias criaram a Cooperativa dos Trabalhadores Rurais da Reforma Agrária Maria Rosa Contestado (Confran), que fortaleceu a produção e comercialização, melhorando a renda de 157 sócios. Foi a partir de então que a comunidade passou a entregar alimentos agroecológicos para 63 escolas de Castro, no âmbito do Programa Nacional da Alimentação Escolar (Pnae).

Além de hortaliças, tubérculos e frutas, a comunidade também avança na produção de grãos. O feijão e o arroz já têm mercado garantido, sendo que parte vai para exportação. Em novembro passado, a comunidade festejou a primeira colheita do trigo, em 10 hectares, com produção de 20 toneladas. No próximo ano, a estimativa é ampliar a produção de grãos. A novidade para este ano é a entrega de alimentos para o programa Compra Direta, para entidades sociais de Castro e outros oito municípios da região, com a entrega de 60 toneladas de feijão no próximo ano.

Segundo o superintendente do Incra no Paraná, Nilton Bezerra Guedes, há um esforço do governo federal para acelerar o assentamento das mais de 80 áreas de acampamentos no estado. “Todos os processos de obtenção de área estavam arquivados e os acampamentos eram tratados como criminosos, e já estavam excluídos do processo de reforma agrária. Graças a decisão do povo brasileiro de mudar os rumos do país e de colocar o presidente Lula de volta, que a gente está fazendo parte do governo e muita coisa já mudou. Uma delas é realmente fazer esses processos todos andarem”, disse.

Dom Sérgio, sempre presente, foi homenageado na vitória do movimento
(Foto: Juliana Barbosa MST/PR)

Área da União era usada ilegalmente pelo agronegócio

Antes de ser transformada em local de moradia e de produção de alimentos, a área da União, conhecida como Fazenda Capão do Cipó, era usada ilegalmente pela Fundação ABC, entidade privada formada por cooperativas do agronegócio e pelo Centro de Treinamento Pecuário (CTP), também coordenado pelas cooperativas. Desde abril de 2014, havia um pedido de reintegração de posse por parte da União contra a Fundação, com multa diária de R$ 20 mil reais. Além de usar a terra de forma irregular, o Centro degradava o solo com o uso de agrotóxico.

Nestes cinco anos a comunidade já alcançou muitas conquistas. Uma delas é a certificação 100% agroecológica e orgânica, que veio em 2018, pela Rede Ecovida. A comercialização é feita a partir da cooperativa da comunidade.

Em 2021, quase 100% das famílias acampadas já conquistaram o Cadastro de Produtor Rural (CAD-Pro). Com este cadastro, as famílias moradoras de áreas ainda não regularizadas tiveram suas atividades agropecuárias reconhecidas, passando a ter o direito de vender formalmente os alimentos que produzem e a pagar tributos ao município. No mesmo ano, o coletivo de mulheres organizado na comunidade conquistou a agroindústria de produção de panificados, macarrão caseiro e beneficiamento de hortaliças.

A comercialização dos produtos é feita a partir de parceria com a Incubadora de Empreendimentos Solidários (IESol) e o Laboratório de Mecanização Agrícola da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Lama/UEPG), o mercado do produtor e a alimentação escolar de Castro, além de feiras. A iniciativa garante geração de renda e fortalecimento da participação e da autonomia das mulheres.

Comunidade partilhou alimentos durante a pandemia

No Maria Rosa do Contestado, nove camponesas e camponeses são guardiões/guardiãs de sementes crioulas, e cultivam e preservam dezenas de variedades. Além disso, durante a pandemia da Covid-19, as famílias da comunidade se uniram para partilhar alimentos com moradores da cidade que enfrentavam a fome. Foram dezenas de toneladas de alimentos agroecológicos doados, somando com a grande campanha nacional de solidariedade do MST naquele período, que no Paraná ultrapassou as 1200 toneladas de alimentos.

A família de Rosângela Rosa Teles está entre as 63 que foram assentadas no Maria Rosa do Contestado. Ela chegou na comunidade há sete anos com o esposo e dois filhos, e lá teve sua filha, que chama de “legítima Sem Terrinha”, por ter nascido em um território do MST.

“No começo falavam que a gente não ia permanecer, que não ia dar certo, daí a gente pensava de ir, mas na mesma hora ficava, e desde então a gente tá aqui até hoje e graças a Deus conseguimos, porque nós ‘estava’ lutando e persistindo, nós conquistamos com muita luta e dificuldade”, conta, lembrando dos quatro primeiros anos vivendo em uma construção feita com lona preta.

“Agora nós construímos uma casinha melhor, por enquanto é de madeira, mas em vista do que era antes tá muito melhor. Tudo que nós plantamos, nós vendemos, vai para a merenda escolar, então tudo que é produzido a gente já sabe que vai ser vendido”, conta orgulhosa. A casa de Rosângela e de seu esposo, Daniel, foi uma das que recebeu a visita do Juiz federal Antônio César Bochenek, durante uma inspeção judicial realizada em novembro de 2020, primeiro ano da pandemia da Covid-19. Foi a primeira vez que um juiz federal visitou um acampamento do MST do estado.

Música marcou celebração da vitória. Foto: Juliana Barbosa/MST PR

Lugar para criar os filhos

E há muito o que melhorar: “O nosso sonho é ter uma escola aqui dentro, que fosse mais perto, a saúde e o ônibus pra levar as crianças, pois é muito longe. Meu sonho é crescer mais, produzir mais e vender as minhas verduras e ver meus filhos crescerem em um lugar que nem esse, é o melhor lugar para criar uma criança, eu já penso assim. O meu sonho daqui pra frente é evoluir cada vez mais”, completa Rosângela, que tem 31 anos.

Dona Irani Vieira mora na comunidade desde o início da ocupação, e produz de tudo um pouco: “a gente trabalha com verduras e hortaliças, e plantamos feijão, arroz, milho, e tem um pouquinho de tudo, tem galinha também”.

Ela fez parte do grande coletivo que preparou o almoço comunitário servido nesta sexta-feira, durante os festejos. “Foi muito gratificante a gente conseguir, porque foi com muita luta e peleja que a gente conseguiu. A gente ficou muito feliz essa semana, comemoramos muito, ajudamos bastante pra ter essa festa, pra ser bem bonita e veio bastante gente pra somar com a gente”.

A vida daqui para frente promete ser de trabalho na terra, com muita produção de alimentos saudáveis para consumo próprio e para comercialização: “E o meu sonho agora é tocar a vida, trabalhandinho, ter galinha, criar minhas vaquinhas de leite pra gente fazer queijo, ter leite e plantar feijão e milho e sobreviver da terra, mandioca, batata, tudo um pouquinho. Quero fazer meu lote muito lindo, de todas as plantações, de tudo um pouquinho, mas junto dos meus filhos. E agora precisa avançar também para as outras famílias que precisam, ainda tem muita gente acampada e que precisa da terra”, completou, lembrando as quase 7 mil famílias que seguem acampadas no Paraná.

Maria Rosa liderou caboclos no Contestado

O novo assentamento leva o nome de uma das lideranças da Guerra do Contestado, Maria Rosa, que comandou os caboclos após a morte do Monge José Maria, atribuindo-se a ela tanto o papel de liderança como o de vidente. Aos 15 anos, em meio às orações, ela entrava em transe e tinha visões de batalhas. Após a morte do monge, ela passou a organizar os caboclos. Em 1913, Maria Rosa tornou-se a chefe-militar, comandando a retirada estratégica para o reduto de Caraguatá, após a primeira batalha em Taquaruçu.

A Guerra do Contestado foi a maior guerra civil camponesa, ocorrida entre 1912 e 1916, em uma área de disputa entre os estados do Paraná e Santa Catarina. Empresas estrangeiras entraram de forma violenta em território caboclo camponês, para avançar na exploração de riquezas naturais e implementaram a colonização europeia na região. Foi um conflito em que o povo humilde e pobre, unido, foi capaz de enfrentar os ataques das forças opressoras.

Com informações do MST do Paraná