Mortos pela covid

Entre os Inumeráveis, o que fica é sempre o mais simples

Projeto de relatos sobre os mortos pela coronavírus no Brasil chega aos indígenas e deve ter memorial em SP

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As mortes pela pandemia são abruptas e deixam um vazio para quem fica. Mas não podem ser somente números, são histórias que merecem ser contadas, eternizadas

São Paulo – “Uma coisa bonita que percebo nesse trabalho, é que quando as pessoas vão falar daqueles que já partiram, o que fica é sempre o mais simples.”

A jornalista Sarah Fernandes está entre os muitos jornalistas, redatores, revisores, artistas, de todo o país, voluntários do projeto que conta histórias sobre os mortos pela covid-19. Comovida pelo Inumeráveis, a jovem decidiu dedicar uma parte da sua jornada profissional a fazer esses relatos. E se emociona com cada um deles.

“A gente busca fazer coisas grandiosas, deixar legados, contribuir com grandes processos, fazer parte de um grande todo. Mas o que fica, o que as pessoas lembram, são as pequenas coisas: buscar um sobrinho na escola, o bolo de chocolate que a pessoa fazia, a forma como ajudou a organizar a festa de aniversário do neto. São coisas muito cotidianas, muito corriqueiras. Não ficam os grandes feitos, o que fica é a convivência, uma brincadeira, o jeito de falar. É muito emocionante, mostra que a gente é realmente único. Diz das relações humanas que a gente constrói.”

O projeto, iniciado em abril, conta inumeráveis histórias com a participação de inumeráveis parceiros. Lá, não se fala em números. Afinal, nasceram para justamente rebater a frieza dos números. Absolutamente focado nas vítimas da pandemia, há ideias de desdobrar o projeto de muitas formas.

“De falar de outros problemas da humanidade, mas não agora”, conta a atriz e bióloga Gabriela Veiga, que faz parte do núcleo central do Inumeráveis. “O que está em vista é que haverá um memorial físico, que já foi proposto para a cidade de São Paulo, desenhado pelo artista Edson Pavoni. A intenção desse memorial físico é propor uma jornada para a sociedade brasileira, de começo, meio e fim, que tem a ver com a elaboração do luto.”

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Edson Pavoni e Gabriela Veiga, do Inumeráveis

Desconforto matemático

Edson Pavoni e Rogério Oliveira, empreendedor social, idealizaram o projeto. Os dois amigos, lembra Gabriela, sentiam um tremendo desconforto com a forma como a pandemia estava sendo tratada, a forma matemática, cheia de números.

Eles decidiram contar essas histórias e fizeram as primeiras entrevistas com alguém que tinha perdido o sogro e a sogra para a covid-19. Eram Edgard e Eunice Farah, mortos em abril, com apenas três dias de diferença. “Antonio, que deu a entrevista, começou muito triste. Ele era muito ligado ao sogro e à sogra. No final, ele estava bem. Então eles perceberam que o Inumeráveis era um jeito de elaborar o luto, que tinha potencial para ser uma corrente de cura, não só das pessoas que fazem as entrevistas, mas de quem se conecta com esse projeto e entende que não são números, são pessoas”, reforça Gabriela, que está no Inumeráveis desde antes de ele ser lançado.

“O Edson Pavoni diz que as palavras entram no coração mais do que os números”, lembra. “Quando a gente conta uma história a gente percebe que as pessoas se conectam muito profundamente. O Inumeráveis é um processo humanizador da pandemia e daqui muitos anos vai contar a história da pandemia de forma justa”, acredita.

“Para mim é um ato político fazer parte do Inumeráveis porque é um projeto que humaniza essa pandemia que o nosso governo trata de forma fria e calculista. Essa irresponsabilidade que está causando danos irreparáveis.”

Machuca o coração

A atriz também faz a ponte entre o Inumeráveis e os povos indígenas, por intermédio de Sonia Guajajara, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e do Mídia Índia. “Eles fizeram também um Memorial Indígena, depois do Inumeráveis, e estamos trabalhando em parceria. Eles nos ajudam com lideranças de povos que foram atingidos e a gente entra em contato”, explica.

“É um processo muito delicado, exige muito respeito”, ressalta. “O tempo é um tempo muito diferente, porque muitos estão na floresta profunda, então demora um tempo para a comunicação acontecer. Mas com bastante paciência e respeito a gente consegue chegar nas lideranças e consegue as histórias.”

Gabriela sofre com a invisibilidade dos povos indígenas, agravada pela pandemia. “O que eles estão passando, o tipo de desamparo que estão passando, machuca muito nosso coração. A gente percebe a invisibilidade que está acontecendo com eles e quão indignados estão com o fato de não terem a própria identidade honrada” revolta-se.

Segundo ela, muitas vítimas indígenas da covid-19 não tiveram amparo sanitário nem hospitalar. “E no atestado de óbito eles aparecerem como pardos o que fere muito a dignidade e a honra dos povos indígenas.”

Tirá-los da invisibilidade, virou também tarefa do Inumeráveis. “Esse movimento começou dentro da ideia de contar sobre as vítimas indígenas, mas agora a gente entrou num fluxo de dar visibilidade para a questão indígena. Todos os lugares que a gente pode, colocamos alguma liderança deles falando.”

Mix de sentimentos

Dedicar-se a garimpar e relatar as histórias do Inumeráveis provoca um mix de sentimentos. “Tem dias que é mais difícil e me sinto triste, impotente, envolvida com história que eu escutei, escrevi… e choro. Fico mesmo muito mal”, conta a Gabriela Veiga. “Tem dias em que acesso a energia de celebrar a vida de quem se foi. Na alegria de ver a pessoa que perdeu alguém falando com tanta beleza e tanto carinho de quem se foi.”

Sarah Fernandes ingressou no projeto por intermédio de um conhecido que perdeu o pai para a covid-19 e isso o motivou a entrar no Inumeráveis. “Na época estava começando e a rede era pequena ainda. Participei de uma reunião e recebemos um treinamento para checar as histórias.”

A jornalista conta que não são eles quem escolhem o que vão relatar. “Como dizem os coordenadores, muitas vezes o texto acaba escolhendo a gente. Tem uma planilha com os relatos, pela ordem com que são inscritos no site. As histórias são sempre muito impactantes.”

Para a psicóloga Silvana Aquino, consultora do Inumeráveis, o luto é essa possibilidade de destinar um lugar, interno e externo, por meio das várias possibilidades de expressão, seja verbal ou simbólica. Uma experiência de perdas em diversos sentidos, frente aos inúmeros papéis e relações que a pessoa falecida exercia naquela dinâmica socio-familiar e afetiva. “O projeto permite que as biografias sejam preservadas, ganhem seu lugar de merecimento pela importância de cada pessoa que morreu para a vida de quem ficou”, esclarece Silvana. “São histórias que carregam consigo um legado, que se vincula às histórias das pessoas que permaneceram e que precisam seguir a vida lidando com aquela falta.”

Famílias em luto

É, claro, muito difícil entrar em contato com essas famílias que estão em luto, que não esperavam, que não estavam preparadas para perder alguém.

“E só podemos aceitar a realidade da perda quando a reconhecemos, quando a nomeamos, quando podemos falar a respeito daquela pessoa, do que ela nos deixou, do seu lugar de importância e do vínculo que, a partir da morte, precisará de ressignificação”, ensina Silvana Aquino. “O projeto vislumbra dar visibilidade a cada um de maneira singular, com destaque às características que ressaltam o que aquela pessoa representou e de que forma essa representação ficará registrada na vida de seus entes.”

Sarah Fernandes observa que são mortes que aconteceram de forma muito abrupta. “E muitas delas poderiam ter sido evitadas, dependendo das escolhas políticas feitas”, observa a jornalista, que tem um ritual para fazer seu trabalho. “Começo fazendo uma oração para a pessoa, dizendo que sinto muito que ela teve que partir, que espero que a família fique em conforto, agradecendo a oportunidade de poder contar a historia dela. Geralmente são relatos de muita saudade, de muita lembrança”, conta.

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Sarah Fernandes escreve para o Inumeráveis

Duas histórias mexeram muito com a jornalista. Uma de um rapaz jovem, de 40 e poucos anos, enfermeiro que estava trabalhando na linha de frente do coronavírus e ajudou a salvar a vida de várias pessoas, a levar conforto para várias famílias. No meio da pandemia contraiu o vírus e morreu. “Uma nora escreveu um relato muito bonito falando sobre a relação dele com o neto, o filho dela, um bebezinho que ele amava muito. Me tocou muito esse avô privado dessa convivência.”

Outra é a história de uma família muito unida. O pai contraiu coronavírus, ficou doente e morreu. “Não puderam ir ao enterro, não puderam se despedir, tudo sempre muito difícil. Uma semana depois a mãe começou a apresentar sintomas e em dez dias faleceu. Esses irmãos acabaram ficando sozinhos, perderam o pai e a mãe num espaço muito curto de tempo. Me tocou muito isso, como essa família foi transformada de uma forma tão triste em tão pouco tempo.”

Sacrifícios

A morte de Érika foi uma dessas, abruptas, que transformaram a vida da família, dos amigos. E poderia ter se tornado mais um número. Mas a amiga Eneide Gama não permitiu e assim definiu Erika, no relato enviado ao Inumeráveis, revisado pela Gabriela Veiga.

“Agradeço muito ao Inumeráveis. Tem uma conexão aí”, conta o irmão Gabriel Erick Leandro dos Santos. “A última peça que minha irmã viu tinha a Gabriela atuando. Essa conexão, em vida, a Erika atraia muito, essas situações. E sem que ela fizesse nada, isso aconteceu de novo. Nossa essência é além do nosso corpo, da nossa matéria. A Erika é muito intensa e vai viver para sempre em todo mundo que teve contato com ela.”

O jovem professor de Inglês conta que tudo aconteceu muito rápido. “A gente não queria ver a Erika sofrendo. Ela tinha outros problemas de saúde. Ela ter partido foi uma coisa que machucou muita gente, mas não conseguíamos imaginá-la não sendo quem ela era, por qualquer motivo. E foi difícil porque era para ela estar aqui. Se deixasse, ela viveria para sempre, com a mesma intensidade.”

Formada em Artes Cênicas, Erika trabalhava numa terceirizada dessas que prestam serviços para bancos e não foi liberada pela empresa para fazer home office. “Ela não tinha condição financeira de ter computador, uma internet boa, para poder trabalhar de casa. Preocupada com as contas, ela continuou indo trabalhar. Isso é uma coisa que a gente queria muito que mudasse. Na nossa família, os problemas financeiros acabam fazendo com que a gente tome certos sacrifícios que não são bons para a nossa saúde”, lamenta Gabriel.

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Gabriel e Erika: “nunca mais nos vimos”

“No caso dela, saindo do Grajaú e indo para Alphaville todo dia ou dentro do trem ou no trabalho, onde duas pessoas testaram positivo para covid, ela ia pegar. Tendo hipertensão, diabete, estava propenso para acontecer. E na confusão do que é covid e não é, ela estava com sintomas muito fortes. Mas ela só queria saber como estávamos. Piorou e o adeus foi quando ela entrou no hospital. Horas depois entubaram e nunca mais nos vimos. No dia 3 de abril recebemos a notícia.”