Análise

Químicas e alquimias na Síria: relatório da ONU diz o óbvio

Hipóteses aventadas para implicar Assad no uso de armas químicas são difíceis de comprovar. Jogo diplomático abre via para entendimento sem ataque dos Estados Unidos

EFE/Local Commitee Of Arbeen

Que houve o uso do gás sarin, não havia dúvida. A pressa em culpar Assad é igualmente previsível

Na frente química, o relatório dos investigadores da ONU entregue ontem (16) ao secretário-geral Ban Ki Moon revelou o óbvio: 1) houve o uso do gás sarin; 2) tanto o gás quanto os foguetes usados são do tipo que o governo de Damasco detém. Mas o relatório não aponta responsabilidades.

Aí entra a frente alquímica. Estados Unidos, Reino Unido e França apressaram-se a dizer que a responsabilidade cabe ao governo de Damasco – apoiando-se até em argumentos semelhantes aos do “domínio do fato”, usados no julgamento da Ação Penal 470 no Brasil. Se o governo de Damasco detém os meios, então é responsável pelos finalmentes.

A Rússia disse que não se pode descartar, porém, o uso do gás pelos rebeldes. A China também reagiu de forma tangencial. Reconheceu o uso do gás, condenou-o, mas sobre a responsabilidade do governo de Damasco não disse nada, nem que sim, nem que não. Ficou no ar.

Em jogo está uma futura resolução do Conselho de Segurança da ONU, que o trio ocidental quer mais dura, mantendo a ameaça de ataques aéreos contra instalações militares de Damasco, retórica (não no sentido de vazio) que a China rejeita e a Rússia não engole. A França está tentando fazer pressão e lobby sobre Moscou no sentido de aceitar a dureza maior da resolução. David Cameron está manietado pela decisão da sua Câmara Baixa proibindo intervenções militares (e consequentemente seu apoio a elas). Obama tenta manter a retórica agressiva mas visivelmente aposta na solução mais diplomática.

Tudo vai depender da presteza com que Bashar al Assad endosse o acordo de Genebra. Seu endosso “de facto”, além de “de direito” reforçará a posição russa na mesa de negociações, dando-lhe campo para manter a iniciativa. Uma recusa ou moleza na resposta enfraquece a posição russa, que terá de recorrer novamente à imobilidade internacional das últimas semanas que antecederam a proposta de Genebra.

Qual a margem de manobra de Assad? É difícil de saber, pois ela, na verdade, depende da natureza do significado do ataque com o gás sarin. As cinco hipóteses possíveis contêm dificuldades de aceitação pelo raciocínio.

Hipótese 1: foi mesmo o governo que ordenou o ataque. Dificuldade: por que fazer isto numa situação em que as tropas do governo estavam levando vantagem.

Hipótese 2: foi algum escalão inferior que tomou a decisão. Dificuldade: numa situação comum de guerra, isto levaria a alguma corte marcial do(s) responsável (veis) e até a uma condenação à morte.

Hipótese 3: alguém de dentro das Forças Armadas sírias provocou o ataque visando criar uma situação que levasse a queda de Assad. Dificuldade: isto só seria possível por alguém do alto escalão do governo, como o próprio irmão de Assad. Mas Assad parece estar seguro do comando de seu exército.

Hipótese 4: uma infiltração dos rebeldes no Exército sírio fez o ataque. Dificuldade: isto mostraria um alto potencial de desagregação no Exército da Síria, de que ainda não há outros indícios.

Hipótese 5: foram os rebeldes os responsáveis diretos pelo ataque, ou alguma facção deles. Dificuldade: todos os analistas apontam a dificuldade disso acontecer, dada a limitação de recursos por parte dos rebeldes.

A margem de manobra de Assad estará condicionada às respostas que puder dar a estas perguntas, hipóteses e dificuldades, aquelas que vão do número 2 ao 5, uma vez que ele mesmo declarou não ser responsável pelos ataques. É difícil que possa provar a hipótese 5. Restam as 2, 3 e 4, se eliminarmos a 1. Mas no caso de uma destas (2, 3, 4) ser a verdadeira, a sua resposta estará condicionada à capacidade de neutralizar a origem do ataque e seus responsáveis. Na situação em que a Síria está, é impossível dizer, de fora, se isto será possível. Até mesmo por estas razões e desrazões, a melhor hipótese para Assad seria mesmo controlar e colocar todo o seu arsenal químico sob controle da ONU para destruição. Caso contrário, correrá sempre o risco de o gás ser usado de novo – e de novo os dedos do ocidente apontarem-no furiosamente como o responsável.

Ao mesmo tempo, outras alquimias vão correndo nas bordas da questão.

1) O jogo diplomático abriu uma  janela (porta seria demais) de possibilidade de um entendimento entre Estados Unidos, Ocidente, Rússia e o Irã, sobre o programa nuclear deste último. A ver.

2) A França está tentando ocupar o espaço aberto pela recusa do Parlamento britânico em dar apoio a uma intervenção militar na Síria. Em jogo, a possibilidade de tornar-se o parceiro preferencial dos Estados Unidos nestas questões, embora mais independente do que os britânicos. A ver.

3) Neste quadro complexo, qual será a atitude da presidenta Dilma Rousseff diante da questão da espionagem diplomática e empresarial de Washington, esperada para esta terça-feira, depois do telefonema direto do presidente Barack Obama para ela na segunda, enquanto estava reunida com o ministro Luiz Alberto Figueiredo?

Obama está diante da dificuldade de dar uma resposta à presidenta e ao mesmo tempo manter a confiança do e no seu serviço secreto, de que depende para dar verossimilhança às suas posições mais duras diante da Síria e dos russos. Uma hipótese seria a presidenta manter a disposição da visita e ao mesmo tempo fazer um pronunciamento duro sobre o tema na abertura da próxima sessão da Assembleia Geral da ONU. Também a ver.