Obama: um discurso das arábias

O mais difícil do discurso era ele próprio discurso, já que ele prometera fazê-lo numa situação em que ninguém – ninguém mesmo – parece estar conseguindo enxergar um palmo adiante […]

O mais difícil do discurso era ele próprio discurso, já que ele prometera fazê-lo numa situação em que ninguém – ninguém mesmo – parece estar conseguindo enxergar um palmo adiante do nariz (Foto: © Jim Young/Reuters – arquivo)

Poucas vezes vi um discurso provocar tantas análises desencontradas e colidentes entre si quanto este do presidente Obama na quinta-feira.

Netanyahu fechou a cara, o punho, e disse que não aceita as fronteiras de 1967 como ponto de partida para negociar com os palestinos. E olha que nesta sexta-feira ele tem um encontro com Obama, em Washington. Porta-voz do Hamas diz que discurso não tem nada de novo e é contraproducente. Mahmud Abbas, da Autoridade Palestina/Fatah chamou uma reunião de emergência. Li comentaristas árabes dizendo que o discurso é uma vasta concessão a Israel. Outros ainda dizendo que o discurso foi um favor ao atual primeiro-ministro israelense, que ele deveria ficar grato. Ainda outros comentários chamavam o discurso de “ingênuo”, por favorecer reivindicações palestinas inaceitáveis para Israel.

Houve mais. Uma interpretação dizia que o objetivo de Obama era propor uma troca aos palestinos, a da aceitação (pelos EUA) das fronteiras de 1967 como ponto de partida (excluindo inicialmente a Cisjordânia ocupada do território israelense) pela desistência de levar à ONU, em setembro, uma proposta de criação de um estado palestino independente. Mas fontes oficiais egípcias (que estimularam o acordo entre Fatah e Hamas) declararam que o discurso favoreceria a votação positiva pelo estado palestino…

Saltaram críticas porque Obama não mencionou a Arábia Saudita ao falar da primavera árabe. E louvores porque finalmente o discurso endureceu com Bashar al-Assad da Síria. Também houve críticas porque o endurecimento com o governo sírio (que considerou o discurso uma interferência indevida em assuntos internos) veio tarde, e louvores porque o discurso finalmente reconhecia e apoiava as revoltas por democracia na região. Mas abriram-se críticas porque o apoio financeiro à região era pequeno demais, um “planinho Marshall” de segunda ordem. Enquanto isso a direita norte-americana através do seu canal Fox dizia que o discurso era equivocado por empurrar Israel contra a parede.

O mais curioso nisso tudo é que lendo uma repercussão tão variegada, é dificil não se encontrar alguma coisa com a qual se concorde: “ah sim, Obama acertou ao dizer isso”. Ou “que bom que o discurso desagradou aquele lado”.

Enfim, foi um discurso de Exu, aquela entidade que às vezes tem duas faces diferentes de cada lado do rosto e que ao passar no meio da multidão deixa a controvérsia atrás de si… mas consegue passar, esse é o aspecto mais importante.

Penso que foi isso que Obama conseguiu. O mais difícil do discurso era ele próprio discurso, já que ele prometera fazê-lo numa situação em que ninguém – ninguém mesmo – parece estar conseguindo enxergar um palmo adiante do nariz. Colocou Netanyahu na defensiva às vésperas do encontro em Washington (sendo que o premiê israelense vai mesmo aos EUA em busca do seu público republicano, com que se sente muito mais à vontade). Abriu espaço para diversas atitudes dos Estados Unidos diante da ameaça da votação na ONU em setembro. Isso pode  incluir tudo, desde uma disposição palestina para protelá-la diante de novas negociações até a possibilidade de seu veto no Conselho de Segurança caso até lá o Hamas não mexa uma linha em suas declarações sobre Israel (o que é provável). Assegurou a aliança estratégica com Israel ao mesmo tempo em que se distanciou da direita representada pelo premiê (é bom não esquecer que o discurso veio acompanhado pela divulgação na mídia de grossos comentários de bastidor de um sobre o outro, Bibi (apelido de Netanyahu) e Obama, espelhando a mútua desconfiança.

Em suma, numa situação difícil, espremida, Obama saiu-se desfilando “que nem cobra pelo chão”, como diz a música do Gil, deixando todo mundo batendo boca sobre o que ele disse ou deixou de dizer. O que comprova que ele está aprendendo a malandragem necessária ao ramo.