A digital sombria da Otan

Em Belgrado as cicatrizes abertas dos bombardeios é visível em toda a cidade (Foto: Flávio Aguiar) Durante a Páscoa, visitei a cidade de Belgrado, capital da Sérvia. É uma cidade […]

Em Belgrado as cicatrizes abertas dos bombardeios é visível em toda a cidade (Foto: Flávio Aguiar)

Durante a Páscoa, visitei a cidade de Belgrado, capital da Sérvia. É uma cidade agradável, na confluência dos rio Danúbio e Sava, cheia de verdes, restaurantes, cafés, uma população alegre que curtia, naquele momento, os primeiros momentos quentes da primavera.

Houve um momento também de peregrinação: fui visitar o túmulo de Marechal Josef Broz Tito, herói da Segunda Guerra, líder da resistência iugoslava, que se tornou um chefe de estado comunista independente em relação à União Soviética (rompeu com Stalin em 1948) e também (ao contrário da Albânia) em relação à China.

O movimento dos “desalinhados”, que reuniu Egito e Índia, entre outros países, foi fundado em Belgrado. Tito foi seu inspirador e uma das mais prestiogiadas lideranças.

Mas o que me chamou muito a atencão foi encontrar, ao lado das belezas da cidade, a impressão digital deixada pela OTAN. Em 1999, depois da queda dos regimes comunistas, os Balcãs ferviam em guerras étnicas, disputas de espaço, nacionalismos xenófobos (é bom lembrar sempre de que, ao contrário da América Latina, nacionalismo, na Europa, é uma bandeira sempre associada à direita, à intolerância, e à exclusão).

Na antiga Iugoslavia, já praticamente desfeita, enfrentavam-se sérvios, com a liderança de Slobodan Milosevic, e Kossovares, com muita presença muçulmana e albanesa. Por detrás do enfrentamento, com massacres criminosos de parte a parte, havia uma disputa entre “a grande Sérvia”, e a “grande Albânia”. Com esta última convertida de “inferno comunista” em “promessa para o capitalismo”, a OTAN entrou no jogo, para desequilibrá-lo contra a Sérvia.

Como faz agora na Líbia, a intervenção foi feita pelo ar, não por terra. A região do sul da Sérvia, mais a capital Belgrado, foram intensamente bombardeadas, entre março e junho de 1999. Um número não preciso de civis (entre 2.000 e 2.500) pereceu em função direta dos bombardeios. Combois de civis albaneses (a quem os ataques deveriam “proteger”) foram atingidos.

Em Belgrado as cicatrizes abertas dos bombardeios é visível em toda a cidade. Devido ao pouco tempo (doze anos) e à falta de verbas (a economia da Sérvia nunca se recuperou), muito pouco foi reconstruido. Foram feitos alguns remendos, com tapumes. Apenas o principal hospital da cidade, destruído no bombardeio (!) foi inteiramente reconstruído.

Belgrado (Foto: Flávio Aguiar)O objetivo do ataque foi destruir a infraestrutura de governo, de defesa e de comunicação da Sérvia. O prédio da TV estatal foi destruído, com 16 mortos – todos civis – inclusive o seu diretor. Para quem olha hoje, dá para reparar que havia um super ou sub objetivo nisso tudo, que era o de destruir o que restava de infra-estrutura do antigo regime comunista, da qual Milosevic se valia em seus planos mirabolantes de uma “grande Sérvia”. Agora essa infra-estrutura poderá ser reconstruída, com a U. E., se e quando a Sérvia nela for aceita.

O modelo da Sérvia e de Belgrado serviu de escala para projetar a ação da OTAN na Líbia. A tática é a mesma: arrasar a infra-estrutura de defesa do adversário, e o pretexto é o mesmo: impedir o “massacre de civis”. Os resultados sào mais precários. Gaddafi vem empregando a tática de manter suas divisões de infantaria e artilharia (já que a aviação está seriamente prejudicada) próximas dos opositores, o que aumenta o risco de que os bombardeios aéreos atinjam esses últimos também, o que vem econtecendo.

A tática dos ataques aéreos foi saudada como vencedora nos Balcãs. Milosevic viu seu poder reduzido, e acabou caindo. Preso, foi levado para Haia, onde morreu em 2006 quando ainda estava em curso seu julgamento por crimes contra a humanidade.

Mas há quem diga também que a “rendição” de Milosevic só foi conseguida porque a OTAN – mesmo que apenas para ameaça-lo – preparou planos de uma invasão por terra. Ao mesmo tempo a Rússia, impotente na época para reagir diante dos ataques da Organização, pressionou Milosevic para que cessasse as ações bélicas e depois deixasse o governo, temerosa de que uma ocupação terrestre consolidasse de vez o predomínio ocidental na região.

A disputa continua. Os EUA estão construindo uma embaixada gigantesca em Belgrado, que provavelmente será também a sede das operações da CIA na região. A província do Kossovo declarou unilateralmente sua independência, prontamente reconhecida pelos EUA e diversos países da U. E., e não reconhecida até hoje pela Sérvia. O principal dirigente do Kossovo hoje é acusado de ser responsável, anteriormente, por uma quadrilha de traficantes de órgãos infantis.

A Rússia voltou a desenvolver uma diplomacia agressiva na região, embora um confronto com os EUA e com a OTAN hoje seja descartado. Ainda assim, os russos não ficaram calados diante da investida da OTAN na Líbia, assim como os chineses.

O Brasil não acompanhou a iniciativa dos bombardeios na Líbia, que também tiveram, como inspiração, as necessidades eleitoriais do presidente Sarkozy na França, premido pela esquerda socialista e pela direita nacionalista, tanto quanto por sua própria perda de prestígio graças às denúncias de favorecimentos fiscais contra seu governo e à contraditória reforma da previdência.

Enquanto tudo isso rola, as feridas de Belgrado continuam à mostra. Permanecem um libelo contra as “soluções armadas” em busca da “paz”.