Política externa do Brasil rompe ‘complexo de vira-lata’

Atuações nos casos de Irã e de Honduras reafirmam papel internacional autônomo em relação aos Estados Unidos, mas não anti-americana

São Paulo – A transformação da política externa brasileira ao longo dos últimos anos parece deixar ressabiados alguns setores de nossa sociedade. Se, por um lado, vê-se um povo com autoestima elevada e um novo posicionamento frente à realidade externa, do outro o que se nota é um medo de contrariar os interesses das grandes potências mundiais.

O episódio mais recente, e talvez o mais claro, é a negociação do acordo na área nuclear com o Irã. O debate pode ser dividido em dois campos que no fundo integram o mesmo tema: a “contaminação” do debate pelo calendário eleitoral, com a tentativa oposicionista de minimizar qualquer avanço obtido pelo governo, e o complexo de inferioridade, amplamente difundido em colunas de alguns jornais de grande circulação, sempre rezando a regra de que o Brasil não deve ficar em campo contrário aos Estados Unidos.

A Casa Branca, mais claramente o Departamento de Estado chefiado por Hillary Clinton, esforça-se por impor, via Conselho de Segurança das Nações Unidas, a quarta rodada de sanções ao Irã. Como pontuou a revista semanal alemã Der Spiegel, Hillary enxergou o acordo entre Brasil e o país asiático como um obstáculo à imposição de punições, e não como uma solução encontrada pela via diplomática.

“Parece que a agenda de segurança dos Estados Unidos precisa ser sempre a mesma dos brasileiros. Claro que coincide em muitos pontos, mas em outros não”, pontua André Reis da Silva, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Isso significa que os dois países têm agendas autônomas, mas não antagônicas. No mais das vezes, por sinal, Brasil e Estados Unidos têm interesses convergentes. Não se nota na pauta comercial brasileira qualquer “antiamericanismo”. Os Estados Unidos são o segundo parceiro comercial do Brasil, lado a lado com a China.

Mesmo pelo lado da Casa Branca parece não haver ressentimento com a nova postura brasileira. Em entrevista recente ao Financial Times, o embaixador no Brasil, Thomas Shannon, afirmou que é natural que os dois países “trombem” em novos temas à medida que a política brasileira se torna mais independente. “Está nos desafiando porque significa que temos de repensar a forma como entendemos nosso relacionamento”.

Repensar o relacionamento parece ser o guia da mudança na gestão atual. Sinal disso são as inúmeras missões diplomáticas e comerciais. Deu-se sequência ao pragmatismo que historicamente orienta a política externa brasileira, aprofundando o caráter universalista. Além disso, Lula manteve uma linha que, segundo analistas, teve início com Fernando Henrique Cardoso, com a relação exterior mais guiada pela figura presidencial do que pelo Itamaraty.

“O principal marco dessa diplomacia do governo Lula é justamente o fato de que o presidente não sofre de ‘complexo de vira-latas’. É algo impressionante. A postura, o comportamento e a maneira que se dirige aos demais chefes de Estado internacionais é de igual para igual”, ressalta Thomas Heye, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF).

O termo empregado pelo especialista refere-se a uma expressão cunhada pelo jornalista e escritor Nelson Rodrigues. Originalmente, a questão era a derrota da seleção brasileira de futebol para o Uruguai na Copa do Mundo de 1950, que remetia a um sentimento de inferioridade que o país tinha em relação ao restante do mundo. No futebol, a celeuma foi superada em 1958 com a conquista do Mundial na Suécia. Em outras áreas, a ideia é aplicada de modo recorrente desde então.

São poucos, cada vez menos, os que afirmam que Lula não tem ligação direta com essa presença mais firme do Brasil no cenário internacional. O carisma do presidente produziu, por exemplo, o encontro em que o mandatário dos Estados Unidos, Barack Obama, chamou o brasileiro por “o cara”. E levou a extensas reportagens sobre o papel do Brasil em publicações de renome como Le Monde e Newsweek. A Time e o El País colocaram Lula entre os mais influentes do mundo – o diário espanhol encomendou a nada menos que o primeiro-ministro José Luis Zapatero a redação do perfil sobre o brasileiro, publicado sob o título “O homem que assombra o mundo”.

Honduras

Zapatero escreveu, na ocasião, que “por fim o mundo se deu conta de que o Brasil é muitíssimo mais que carnaval, futebol e praias”. O espanhol não duvidou sobre a necessidade de reforçar o apoio ao anseio brasileiro de ter assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e lembrou que, semanas antes, os dois haviam estado em lados opostos na disputa pela sede das Olimpíadas de 2016 – o Rio de Janeiro levou a melhor sobre Madri. Naquele momento, o Brasil já estava garantido também como sede do Mundial de 2014.

Cristina Pecequilo, professora de Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), entende que a sociedade brasileira incorporou um componente de confiança. “Além disso, houve uma quebra daquelas visões um tanto minimalistas de que o Brasil não poderia ter um papel importante no mundo. Mudou não só a base de poder brasileira, mas a percepção do que é ser brasileiro”, afirma.

Outro exemplo dessa ‘revogação’ do complexo de vira-lata foi o caso de Honduras. O Brasil colocou-se imediatamente contra o golpe de Estado que derrubou o presidente legítimo Manuel Zelaya, em oposição a um titubeante Estados Unidos. Após as eleições, que ocorreram sem o retorno de Zelaya ao poder, o Planalto seguiu contra o golpe, negando-se a reconhecer o governo de Porfírio ‘Pepe’ Lobo. A Casa Branca, por outro lado, apressou-se em legitimar a nova gestão hondurenha.

Agora, meses depois, sucessivos informes da Organização dos Estados Americanos (OEA) dão conta de que as Forças Armadas continuam controlando o país, assassinando ou ameaçando aqueles que se opõem à derrubada do governante legítimo.

A Der Spiegel, que abordou com profundidade o acordo entre Brasil, Turquia e Irã, destaca que “muitos agora veem o presidente do Brasil como um herói do Hemisfério Sul e um importante contrapeso a Washington, Bruxelas e Pequim”. A publicação alemã pondera que Lula sabe que precisa manter boas relações com Estados Unidos, Grã-Bretanha e Rússia, mas tem consciência de que deve ter laços fortes com China, Índia e os países africanos.