Para combater a fome, ‘não bastam só políticas públicas’

Gisela Solymos, do Centro de Recuperação e Educação Nutricional, aponta que, apesar da queda de 53% no número de subnutridos, desnutrição ainda é comum no Brasil, mesmo nas maiores cidades

Mais que políticas públicas, segurança alimentar no Brasil também exige maior envolvimento da sociedade (CC/Sergio Pereira)

São Paulo – Tão perto e tão longe da riqueza e das políticas públicas estão as duas milhões de pessoas que vivem em favelas na cidade de São Paulo, segundo dados de um estudo realizado pela prefeitura de São Paulo em 2007. Cerca de 11% da população de sua região metropolitana vive em “assentamentos subnormais”, de acordo com o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Nem todas essas pessoas vivem em risco social, e não se tem um número de quantas são desnutridas, mas estas são muitas, segundo a psicóloga Gisela Solymos, diretora do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (CREN), entidade premiada e referência em combate à desnutrição primária para a prefeitura de São Paulo. Só o CREN atende a pouco mais de 3 mil crianças e adolescentes subnutridos.

A primeira unidade do CREN foi fundada em 1993, e nesses quase 20 anos, a organização assistiu de perto a queda de 53,7% no número de subnutridos, em relação ao total da população do brasileira. A redução foi apontada pelo relatório Estado da Insegurança Alimentar no Mundo 2012 da ONU, divulgado há três semanas atrás. De 23 milhões de pessoas com subnutrição, entre 1990 e 1992, passamos a 13, entre 2010 e 2012 – uma queda de 40%.

Hoje, 6.9% da sociedade brasileira é subnutrida. Nessas duas décadas, o governo federal adotou políticas públicas que lutavam contra a miséria. Fernando Henrique Cardoso (PSDB) realizou o Programa Comunidade Solidária, presidido por sua primeira-dama, Ruth Cardoso, e o Programa Saúde da Família (PSF). Luís Inácio Lula da Silva (PT) ampliou estre último programa e substituiu o primeiro pelo Fome Zero, que compreendeu o Bolsa Família, apontado pela ONU, no relatório, como referência no combate à fome.

“A desnutrição em uma família marca um altíssimo risco social”, diz Gisela. Desde o princípio, os envolvidos com o CREN, um grupo de profissionais da então Escola Paulista de Medicina, hoje, a Unifesp, entenderam que lutar contra a desnutrição envolvia desafios econômicos e sociais, e não só facilitar o acesso ao alimento: era uma luta contra a pobreza. Mas eles concentraram seus esforços em combater a desnutrição infantil tête-à-tête. Fazem a chamada busca-ativa.

Por meio de mutirões, visitam comunidades com alto índice de vulnerabilidade e medem o peso e a estatura das crianças e adolescentes, método pelo qual identificam a desnutrição infantil – o censo antropométrico, que desenvolveram no Brasil. Hoje, eles têm duas unidades de atendimento ambulatorial em São Paulo, uma no bairro de Mirandópolis, na zona Sul, e outra na Vila Jacuí, na zona Leste, e uma unidade em Maceió. Fazem projetos pontuais em diversos países e, entre alguns conflitos com o poder público durante esses anos, conseguiram estabelecer uma parceria sólida com a secretaria municipal da saúde.

Em entrevista à Rede Brasil Atual, Gisela avalia essas duas décadas de políticas públicas contra a fome e aponta que, sozinhas, elas não bastam, ressaltando o papel da sociedade civil. A relação entre esta e o governo, ou melhor: entre o privado e o público – assunto quente durante a corrida eleitoral em São Paulo –também faz parte da conversa. Confira:

A desnutrição no Brasil diminuiu. O Relatório Estado da Insegurança Alimentar no Mundo da ONU divulgado no mês passado aponta que tivemos uma queda de 40% no número de pessoas desnutridas nos últimos 20 anos. Como conseguimos alcançar esse avanço?

A gente tinha dificuldades econômicas muito grandes. O Brasil é um país mais rico do que era a 20 anos atrás. E a desnutrição é um ciclo vicioso de infecção e má alimentação. Ela precisa de dois fatores pra acontecer, e um catalisa o outro. Em geral, ela ocorre em crianças, que são as mais suscetíveis,quando elas começam a andar, porque deixam o seio e do colo da mãe e vão para o chão, ficando sujeitas a infecções.

E, como estão em uma família pobre, a alimentação não é das melhores. Por se alimentar mal, a criança fica doente, e por ficar mais doente, se alimenta mal. A infecção é a exposição a um ambiente muito contaminado. Principalmente em comunidades pobres, a contaminação dos ambientes está ligada ao acesso à água, então estamos falando de saneamento básico. Hoje, quase 90% da população tem acesso à água encanada, mesmo nas comunidades carentes.

Antigamente não era assim. Isso diminui muito a prevalência das infecções gastrointestinais. Não resolve todo o problema, mas diminui muito. Tem outro fator que é a diminuição do número de crianças por família. Na década de 1960, eram seis filhos por família. Hoje, são dois. A família continua pobre e desfavorecida, mas tem menos filhos pra cuidar, então tem uma renda per capita maior.

E depois, há os programas de transferência de renda. O que ajudou muito foi o programa Saúde da Família , que ainda continua em ação no Brasil, contando com a proposta do SUS e que tem a proposta dar uma atenção primária à saúde. Com os agentes comunitários da saúde, aquelas crianças que antigamente sofriam com diarreia e ficavam piorando e piorando em casa, até parar no hospital quase morrendo, passaram a ser acompanhadas logo no início da infecção.

O Bolsa Família também tem um papel importante, apesar de só 20% das famílias atendidas pelo CREN serem atendidas pelo programa. Estamos crescendo economicamente, mas a distribuição de renda não melhora. Nosso índice Gini ainda é grande, em relação aos outros países. A gente ainda tem taxas de fome bastantes altas concentradas no que chamamos de bolsões de pobreza. De qualquer modo, o fato é que a a subnutrição diminuiu nas crianças e adolescentes das populações carentes.

Mas são famílias pobres. Por que tão poucas recebem o Bolsa Família?

A desnutrição infantil é identificada, quando a criança não está crescendo de acordo com o que era esperado dela. Esse não crescimento acontece porque ela come mal e fica doente, mas tudo isso acontece porque a família dela está sofrendo muito. A desnutrição marca uma família de altíssimo risco social.

Essas famílias tem parentes doentes, não tiveram acesso a escola e não têm moradia, nem trabalho. E são também famílias desorganizadas, sem documentos. Muitas das nossas famílias moravam em favelas que sofreram incêndios. Elas perderam tudo, de novo. Atendemos a uma família dessas, cuja casa pegou fogo pela segunda vez, perdendo tudo pela segunda vez, inclusive os documentos.

Em um dia qualquer em que essas pessoas têm de pegar um ônibus e se dirigir até o local para se inscrever no Bolsa Família, eles não têm documentos e não conseguem se cadastrar. Temos de fazer todo um caminho de orientá-los a ter uma rotina, para levantarem cedo, para correrem atrás de todos os papeis necessários. Eles estão excluídos. É assim que acontece a exclusão social, especialmente na cidade de São Paulo, que é uma cidade riquíssima e teria recursos pra todos.

O problema do cadastro é do programa ou das famílias? Afinal, é preciso também um esforço por parte do atendido.

Eu lhe pergunto: se o programa é feito para um publico alvo, é o público que tem de se adaptar ao programa, ou este àquele? É uma questão pessoal. É como responder: é culpa do aluno ou da escola o fato de ele chegar à universidade sem saber interpretar um texto? É culpa do aluno, que não leva o material no dia certo, que não consegue entender o que o professor fala, ou é culpa do sistema de ensino da escola que não está adaptado à realidade do aluno? O nosso método no CREN é chegar até o público.

Você se refere à busca-ativa? Explique, por favor, um pouco melhor o método.

Na busca-ativa, vamos até as famílias e fazemos o que chamamos de senso antropométrico, medimos sistematicamente peso e estatura de todas as crianças de uma comunidade. Para trabalhar com subnutrição, você precisa fazer busca-aitva, porque essas famílias estão excluídas do serviço.

Pregamos isso há 20 anos. Os governos municipais montam um serviço de atendimento ao desnutrido, e esperam as famílias chegarem, mas elas não vão chegar. O conceito de exclusão é esse. Sem ser modesta, acho que, por nossa influência, a prefeitura de São Paulo entende isso um pouco melhor hoje; Mas de um modo geral essa compreensão pertence a poucos.

Os programas do governo federal são desses poucos?

O Programa Saúde da Família teoricamente faz isso. O conceito dele é ter equipes de cinco agentes comunitários de saúdes, morando na comunidade onde eles trabalham. Cada um deles é responsável por 200 famílias. Eles são supervisionados por duas técnicas de enfermagem e por uma enfermeira, com um médico generalista de apoio.

Esses agentes são treinados para bater de porta em porta e ver como estão os problemas da da casa, levantando as doenças crônicas, como diabete e hipertensão. Há um protocolo básico de atuação. Isso é busca ativa. Mas é um programa do governo federal que está implantado nos municípios, no sistema de saúde. A busca-ativa não acontece nos casos de má nutrição.

Por quê?

No fundo, é uma falta de entendimento. Uma política pública, pelo próprio nome, depende de uma decisão politica. E toma-se decisões dependendo daquilo se acha prioritário. O que nosso governo não entendeu ainda é que, em 2030, 70% dos casos de morte no mundo vão ter causas nutricionais. O que hoje está matando as pessoas é hipertensão e cardiopatia. E as pessoas morrem por essas duas coisas porque comem mal.

O problema é que em geral as políticas são feitas pensando nos próximos quatro anos, e a educação não é a única que sofre com isso, a nutrição também. É um problema de visão. Se a gente pudesse ser proativo em prevenir, diagnosticar, o quanto antes possível, com rapidez, os casos de distúrbios nutricionais primários – seja subnutrição, seja obesidade – a gente ia economizar muitos recursos lá na frente.

O que pensa do Fome Zero?

O Fome Zero nasceu de uma intuição incrível de combater à fome trabalhando juntos. O programa se propunha a ser interministerial. Naquela época, quem assumiu o governo, o pessoal que entrou junto com o Lula, o José Graziano e o Frei Betto, entendeu que a maquina burocrática era durona de se modificar. Eles fizeram do ministério da Assistência social o ministério de Desenvolvimento Social (MDS) e Combate à Fome, que seria um ministério que promoveria essa articulação.

Nós, do CREN, conseguimos desenvolver uma série de projetos com o MDS, porque de fato era o ministério mais aberto e via o problema nutricional de uma forma mais global; os ministérios e as secretarias têm o hábito de se preocupar só com suas próprias praias. Com o MDS, desenvolvemos um projeto muito legal no semi-árido de Minas Gerais, que consistia em promover o protagonismo infantil em escolas de ensino médio.

Que o MDS xeretasse em escolas era algo completamente novo, em termos de governo. Acredito que o Fome Zero tenha, de fato, quebrado tabus, a educação passou a ter uma preocupação maior com a merenda escolar, de não só dar qualquer coisa para encher a barriga da criança quando ela está na escola. Eles também fizeram editais para grupos que estivessem interessados em estudar bolsões de pobreza e fazer projetos para comunidades específicas.

Mas, em termos de recursos, essas propostas são mínimas em relação ao Bolsa Família. Grande parte de recursos do MDS vai hoje para esse programa. Isso tem seu mérito. Eles pensam: “bom, se quero ajudar os pobres, porque vou repassar os recursos por dentro da minha máquina estatal?” No entanto, o Bolsa Família tem outros problemas, que é o do assistencialismo. É uma ação assistencial que está durando mais tempo do que deveria.

O CREN está posicionado em dois lugares na cidade de São Paulo, uma cidade com um PIB de R$ 389 bilhões, e em Maceió, outra cidade grande. A subnutrição é de fato comum nos grandes centros urbanos. Como é possível termos pessoas passando fome tão perto da comida?

Porque nós conseguimos conviver com isso. É um problema moral e cultural. Essa mesma pergunta me foi feita por um aluno em Milão, na Faculdade de Sociologia da Universidade Católica de Milão. Eu estava explicando da pobreza em São Paulo, dos dois milhões de pessoas morando em favelas, e ele me perguntou: “Essas pessoas não se rebelam por estar vivendo nessas condições que você está mostrando pra a gente?”.

Nunca ninguém tinha me feito essa pergunta. Então, pensei que se isso existe é por uma conivência de todos nós. Não bastam só políticas públicas. Essa realidade existe primeiro porque as políticas públicas se movem dessa forma, mas também porque as pessoas se movem dessa forma. Talvez por medo ou por timidez, os vizinhos dessas favelas aceitam isso.

Pode ser uma herança da escravidão, estamos acostumados ao fato de que alguns têm uma casa boa e outras não tem nenhuma, e a gente não se move contra essa realidade. Só consigo pensar que esse é um problema de mentalidade. Sim, as políticas públicas têm a ver com isso. A definição de como pagar os trabalhadores, a política de mercado, tem um papel importante.

Para mim, o maior programa de distribuição de renda seria ter uma menor diferença entre o maior e menor salário e e ter uma boa escola. Isso é transferência real de renda, na minha opinião. Mas porque o Brasil não faz isso? Porque estamos decidindo diferente. É um problema da nossa história cultural. Antes, diziam que o Brasil era um país católico, mas não era, porque em um país católico as pessoas não passam fome.

Qual tem sido o papel da sociedade civil e das organizações sociais nessa luta?

O Brasil tem outro lado. É um país riquíssimo e muito criativo em projetos sociais,, porque tem pessoas que decidiram se envolver com essa realidade, mesmo sem saber direito o que fazer. O terceiro setor e a quantidade de entidades sociais trabalhando, e as pessoas buscando soluções individualmente é uma coisa incrível.

Mas acho que a gente precisa pensar os problemas coletivamente, se não, somos nós, do CREN, trabalhando no nosso canto, e outras entidades trabalhando nos deles. Se achássemos um jeito de fazer isso juntos, teríamos uma força maior. Mas é muito bonito e me dá muita esperança.

Se por um lado temos um índice de desigualdade tão enorme, uma diferença entre o maior e o menor salario tão grande, políticos que não se importam com os salários dos trabalhadores, pessoas que não se envolvem porque acham muito difícil, há outras, sem recurso nenhum, que só porque têm uma dor no coração, colocam a mão na massa e criam coisas maravilhosas.

O CREN é uma entidade privada. As parcerias com esses tipos de organização foram tema do último trecho da corrida eleitoral em São Paulo. Há setores que discordam da parceria entre o governo e instituições privadas. O que pensa dessa relação e como o CREN lida com ela?

Privado? Em que sentido o CREN é privado? Não somos uma Organização Social (OS), somos uma entidade filantrópica. Não temos fins lucrativos. A gente é um público não governamental. Eu gosto de falar assim, porque a gente só atende pacientes do SUS. Nós crescemos em termos de qualidade por conta da forma que trabalhamos, do método que desenvolvemos e da nossa história. Mas em termos de quantidade, no número de atendimentos, em termos de alcance, foi em função da parceria com a Secretaria Municipal de Saúde.

Em minha experiência, vejo que o privado/público, ou seja, uma associação privada de interesse público, como nós, consegue produzir melhor, com menor custo, porque essa associação nasce de alguém que identificou um problema, então ela nasce do próprio terreno. Ela está localizada em um território, conhece a realidade daquela população e está mais preparada para responder ao problema, entende? Por que os governos precisam apoiar entidades privadas como essa? Porque eles prestam um serviço para o bem comum e respondem a uma necessidade da população.

Há casos de sucesso de governos que usam a parceria com o privado como uma ferramenta de gestão. Na minha experiência de vida, sempre vi entidades privadas oferecerem serviços com maior qualidade e com mais resultados do que os administrados diretamente pelo governo. Espero que o Haddad cheque a esse conclusão.