Judicialização na CPI

Especialistas defendem indenização às vítimas de ‘charlatanismo’ relacionado ao ‘kit covid’

“Temos uma responsabilidade geracional em cobrar esses crimes contra a humanidade que estamos assistindo na pandemia”, afirma o presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos

CC 2.0 Diego Vara
CC 2.0 Diego Vara
"Além de não funcionar, esses medicamentos trouxeram para a população uma falsa segurança", aponta p presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB)

São Paulo – Em entrevista ao Jornal Brasil Atual nesta quinta-feira (12), especialistas do campo da saúde defenderam punições contra empresas farmacêuticas que lucraram em cima do ineficaz “tratamento precoce” contra a covid-19. A sugestão foi levantada na sessão de ontem da CPI da Covid e ganhou o apoio de senadores do colegiado. Pessoas que se sintam lesadas por conta do uso do chamado “kit covid” devem, segundo os parlamentares, procurar as defensorias públicas de seus estados para buscarem indenização. 

A cúpula da comissão também confirmou que encaminhará ao Ministério Público Federal pedido de indiciamento do presidente Jair Bolsonaro pelos crimes de curandeirismo e charlatanismo, entre outros, pelo que classificam como uma campanha “inconsequente” e “criminosa” em favor do “tratamento precoce”, defendida pelo mandatário mesmo sob a advertência de comprovada ineficiência científica dos medicamentos. A judicialização também é defendida pelos especialistas. 

“Temos uma responsabilidade geracional em cobrar esses crimes contra a humanidade que estamos assistindo nessa nossa geração porque é isso que se opera. Não tem jeito, não tem outro caminho além de se basear na ciência e na técnica para fazer esse enfrentamento”, defendeu o farmacêutico Ronald Ferreira dos Santos, presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar), mestre em Farmácia e ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS). 

Lucro ficou acima de vidas

À jornalista Marilu Cabañas, o especialista condenou as relações “promíscuas” que vieram à tona na pandemia entre a indústria farmacêutica, o governo federal e alguns médicos. Esses desvios ficaram evidentes após o depoimento à CPI do diretor-executivo da farmacêutica Vitamedic, Jailton Batista. Ele confirmou que a empresa obteve lucro significativo durante a pandemia com a venda da ivermectina. O remédio foi usado de forma indiscriminada por muitas pessoas para evitar o coronavírus, apesar de sua ineficácia. A droga tem uso indicado apenas para o tratamento de verme, sarna e piolho. Mas ganhou fama após falas favoráveis de Bolsonaro e de governistas desde o início da crise sanitária. 

Em dados apresentados à CPI, o diretor-executivo comprovou que o faturamento da Vitamedic aumentou consideravelmente na pandemia. O lucro, ao final de 2020, saltou de R$ 200 milhões, na comparação com o ano anterior, para R$ 540 milhões. Apenas entre os sete primeiros meses desse ano, a farmacêutica já havia lucrado R$ 300 milhões. O faturamento foi puxado principalmente pela venda de ivermectina, segundo Batista. Ela passou de R$ 15,7 milhões, em 2019, para quase R$ 470 milhões no ano passado. Um crescimento acima de 600% na venda. 

“O ápice da relação de absurdo de gente lucrando em cima de milhares de vítimas”, criticou Santos. Para o presidente da Fenafar, o que país assiste com a ivermectina, cloroquina, entre outros medicamentos do chamado “tratamento precoce”, é a destruição da garantia constitucional de que a saúde é um direito, para priorizar interesses privados. “São poucos se beneficiando em detrimento da morte e da não solução do conjunto das demandas e colocando o medicamento nessa situação”, observou. 

Relações espúrias

A crítica é compartilhada pelo médico infectologista Dirceu Greco, professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB). De acordo com ele, a defesa e o uso das drogas do chamado “kit covid” provocaram outros sérios problemas sanitários. “Além de não funcionar, esses medicamentos trouxeram para a população uma falsa segurança. As pessoas começaram a usar aquilo (ivermectina) e a dizer que não iam se infectar. Que elas poderiam se aglomerar, não usar máscara, ouvir estupidez desse atual presidente da República que estavam bem, e até nem usar a vacina”, afirma.

Na comissão, a Vitamedic ainda assumiu que “pagou por fora” para médicos promoverem a ivermectina. Uma relação “espúria” que, contudo, é antiga, observa o especialista, mas que precisa ser regulada por legislação específica. “Isso começa muito tempo atrás. Inclusive a própria América do Norte tem uma lei que chama Sunshine Act, que obriga os médicos a declararem tudo o que eles recebem da indústria farmacêutica para mostrar onde está o conflito de interesses. Porque é um absurdo um médico aceitar. E quando ele participa, está dando aval, o que é conflituoso. Pior ainda com uma medicação que não tem efeito e, pelo contrário, é deletéria, falo isso tanto como bioeticista e como infectologista”. 

Para Greco, o cenário exige que a sociedade civil cobre os envolvidos no lobby de medicamentos sem comprovação científica contra a covid-19. “O nosso papel é não deixar que isso desapareça com tempo. A pandemia felizmente será controlada, a vacina está aparecendo mais. Mas temos que manter essa pressão pelo financiamento melhor do Sistema Único de Saúde e para que isso ultrapasse a pandemia, porque não podemos voltar àquela normalidade anterior da disparidade, da estupidez, e dessas relações espúrias.”

Confira a entrevista

Redação: Clara Assunção


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