violência de gênero

O reflexo do machismo na saúde da mulher é o que a faz achar que ‘seu corpo é sujo’

Medicalização do corpo feminino é tema de evento na Semana da Diversidade da FMUSP, que discute como o discurso na área médica reproduz as contradições de uma sociedade marcada pelo patriarcalismo

Arquivo EBC
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"A mulher é socializada para achar seu corpo sujo. Mas essa não é uma questão da medicina, ela faz parte desse grupo de instituições que vão discriminar a mulher", destaca professora

São Paulo – A 4ª edição da Semana da Diversidade da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP): Combinamos de Não Morrer debate nesta quinta-feira (7), às 19h, no Anfiteatro de Medicina Preventiva da instituição, o discurso médico-científico sobre o corpo feminino e seu impacto sobre a saúde. Intitulado “Da histeria ao ovário policístico: a medicalização da mulher”, o evento, que é gratuito e aberto ao público, integra a programação iniciada nesta segunda (4) que coloca em xeque as práticas médicas que perpetuam opressões como o racismo, LGBTfobia, perseguição de minorias sociais historicamente marginalizadas e o próprio machismo, do qual o campo da saúde também não escapa. 

Pelo menos desde que o fenômeno de expansão da área médica – a medicalização – deu origem à área da ginecologia obstetrícia, o discurso da saúde reproduz as contradições dessa sociedade marcada pelo patriarcalismo. Apoiado nesse entendimento, que sujeita as mulheres a posições inferiores aos homens, a área médica as coloca como um corpo a ser mais fiscalizado e medicado, como observa a professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP Elisabeth Meloni Vieira, especialista em Saúde Pública. 

“A mulher é socializada para achar seu corpo sujo. Mas essa não é uma questão da medicina, ela faz parte desse grupo de instituições que vão discriminar a mulher”, destaca professora à RBA

Referência na discussão sobre os direitos sexuais e reprodutivos e autora de diversos artigos que tratam desde a medicalização à prevalência da violência contra as usuárias de serviços de saúde, Elisabeth explica que a área médica cumpre a função que o capitalismo quer que ela tenha. É dentro desta cena que surgem os métodos contraceptivos. 

De acordo com a professora, as medidas para impedir a gravidez carregam conotações políticas. Exemplo disso é quando o controle populacional começa a ser feito com a esterilização involuntária, posteriormente considerada, em 1957, pelo Tratado de Roma, um crime contra a humanidade. Mas a contracepção, ainda que responsabilize unicamente a mulher, ao ganhar força no século 20 não deixou de representar também uma garantia à proteção, o que deu condições para que os direitos sexuais e reprodutivos do corpo feminino pudessem ser debatidos. 

A dicotomia desse processo também será examinada no debate desta quinta pela antropóloga e professora doutora Fabíola Rohden e a médica sanitarista e professora da Faculdade de Saúde Pública da USP Carmen Simone Grilo Diniz, com mediação da professora da Faculdade de Saúde Pública da USP Cristiane da Silva Cabral. A proposta é que se levantem questões quanto ao controle normativo e tecnológico da sexualidade feminina e do processo reprodutivo, além dos mitos sobre a mulher e o corpo feminino, que muitas vezes acabam sendo instrumentos para a violência de gênero, como ressalta Elisabeth. 

“Tem uma série de práticas que são utilizadas sem serem baseadas em evidências, como amarrar as pernas na hora do parto, a tricotomia – raspagem dos pelo, a episiotomia, corte do períneo”, aponta a professora, ressaltando como uma das possíveis formas de violência obstétrica na hora do parto a própria cirurgia cesariana. “A cesárea aumenta os riscos para a mulher e o bebê. Nela, se tem um corpo que não participa do parto, é o médico que arranca de dentro. Será que isso é o melhor para mãe e bebê?”, questiona a professora. 

Sociedade que viola o direito ao parto normal 

Pelo menos desde o século 19, quando a medicina entrou nessa área, que os partos normais, prática das parteiras, e a cirurgia com a cesárea, estão em disputa. Este último – “um modelo desnecessário”, de acordo com a médica e especialista – não deixa de atender as demandas mercadológicas da área da saúde. “Quem tem dinheiro para pagar um profissional que possa acompanhar 15 horas de parto normal? Mais fácil ele ficar lá duas horas, fazer a cesárea e ir para o seu segundo emprego”, pontua. 

Mas a cesárea é, no entanto, a prática mais vigente no Brasil e, no estado de São Paulo, foi posta, em agosto, como garantia para a gestante que optar pela cirurgia. A proposta está estabelecida pelo Projeto de Lei 435/2019, da deputada estadual Janaina Paschoal (PSL), criticado pela professora. “Vivemos em uma sociedade que não dá o direito à mulher ter um bom parto normal. Falta informação”, garante Elisabeth, ressaltando a falta de autocrítica da própria área médica sobre essas violências. “A medicina precisa se enxergar dentro desse contexto social.” 

A 4ª edição da Semana da Diversidade da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP): Combinamos de Não Morrer segue até sábado (9). A FMUSP fica na Avenida Doutor Arnaldo, 455, em Cerqueira César. 

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