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Glória Pires: ‘Lindu tem a bravura dos heróis’

Premiada melhor atriz no Festival de Brasília, por sua atuação em 'É Proibido Proibir', Glória Pires considera o 'Lula, o Filho do Brasil' uma história comum e avassaladora

Felipe Barra
Felipe Barra
"Uma cena difícíl de fazer foi a da morte, quando dona Lindu já está bem doentinha e diz pra ele: 'Você sabe o que tem que fazer. Se dá pra fazer, vai e faz. Se não, espera, o mundo vai rodando'. A mensagem toda do filme é muito boa"

Glória Pires diz que suas filhas acharam “fofo” o filme É Proibido Proibir. Tão fofo que faturou oito prêmios do Festival de Cinema de Brasília, entre eles melhor filme, melhor atriz (para Glória) e melhor ator (o titã Paulo Miklos). Ela está no batente desde criancinha: começou em A Pequena Órfã, em 1969, e ficou famosa aos 15 anos, como Marisa, a filha da ex-presidiária Júlia Mattos em Dancing Days, 1978.

Para ele, seu prêmio é só mais um entre tantos faturados no cinema, como em O Quatrilho (no Festival de Havana), ou na TV – pelas gêmeas Ruth e Raquel de Mulheres de Areia ou a diabólica Maria de Fátima de Vale Tudo. Mas para o filme de Ana Muylaert, a premiação pode ser promessa de público e salas de projeção, de cuja atenção ainda padece o bom cinema brasileiro.

Falta de atenção é o que não passa pela cabeça dos produtores de Lula, o Filho do Brasil, também protagonizado por Glória Pires. O filme estreia em circuito comercial no dia 1º de janeiro em 400 salas do país com a expectativa de ultrapassar a marca de 500 cópias em exibição. A família Barreto sonha bater a bilheteria de Dona Flor e Seus Dois Maridos, de 10,5 milhões de pessoas. Até o final de dezembro, trabalhadores sindicalizados poderão adquirir, por R$ 5, ingressos antecipados para as sessões da primeira semana de janeiro.

Aos 46 anos, Glória atribui a segurança conquistada na carreira à presença constante dos pais em sua vida, a empresária Elza Pires e o comediante Antonio Carlos Pires, o Joselino Barbacena da Escolinha do Professor Raimundo. Ela admite que viver dona Lindu, a mãe de Lula, foi uma experiência diferenciada, mexeu com sua história de atriz, de mãe e de filha. Para Glória, trata-se de uma trajetória muito comum a milhões de brasileiros, mas ao mesmo tempo desconhecida. O filme tem a pegada de um épico e dona Lindu, a bravura de uma heroína.

Revista do Brasil – Enquanto você despontava na TV, em Dancing Days (1978), Lula ganhava projeção nacional como líder sindical. Você tinha alguma noção do que estava acontecendo no país naquela época?

Glória Pires – Não, nenhuma. Eu só fui ouvir falar do Lula quando ele já era presidente do sindicato, quando houve a prisão (1980).

O filme O Filho do Brasil tem algo de especial para você ou é apenas mais um bom filme em sua carreira?

As duas coisas. Acho que ele é um excelente filme, de muita qualidade. Mas o mais especial disso é essa história. Creio que 80% das histórias dos brasileiros passam de alguma forma por essa, que tem dados comuns a todos nós. Só que, por acaso, essa que está sendo contada é a do nosso presidente, e é especial prá gente pelo exemplo que ela dá, de se acreditar que é possível. O brasileiro tem uma crença de que no fim vai dar tudo certo. A gente trata de pessoas que saíram de uma situação de extrema dificuldade e conseguiram reverter essa situação, uma história de futuro improvável.

Uma criança que bebia água da mesma fonte que as vacas é de fato uma sobrevivente…

Né? E como tanta gente. É isso que eu estou dizendo. É uma história comum no Brasil. Mas é a primeira vez que se vê essa ausência completa de horizonte se transformar numa história tão bonita, tão avassaladora.

Como foi o trabalho de pesquisa e de construção da personagem dona Lindu. O que ou quem a ajudou mais?

Eles ficaram muito emocionados com o fato de verem sua história bem contada, principalmente da ligação deles com a mãe. Depois de tanto anos decorridos da morte dela, ainda hoje todos os filhos se emocionam muito falando dela. Então todos ajudaram demais.

Teve alguma coisa que você refez porque algum deles disse que não estava bom?

Não, nada. O Frei Chico estava em quase todas as filmagens. O Vavá também foi algumas vezes. Eles observavam, conversavam muito. Mesmo sendo uma recriação, eles ficavam muito emocionados de perceberem ali que momentos da vida deles estavam sendo contados.

E você?

Muito. Porque é uma história muito linda, porque é real.

Há alguma cena que a tenha tocado mais?

Uma cena que foi dificílima de fazer foi a da morte, quando ela já está bem doentinha e diz prá ele: “Você sabe o que tem que fazer. Se dá prá fazer, vai lá e faz. Se não, espera, que o mundo vai rodando, vai rodando e a oportunidade vai cair na sua mão”. Enfim, tenha paciência. Aquela foi uma cena muito difícil, eu fiquei muito emocionada, por umas coisas… histórias minhas, meu pai e minha mãe, foi bastante complicado. Bom, a mensagem toda do filme é muito boa.

E como a mãe Glória Pires se relacionou com a mãe dona Lindu? Por exemplo, essa história de ter de fazer um filho mudar de ideia, recuar…

De uma certa forma a gente está sempre fazendo isso. Acho que, para um pai, uma mãe, essa coisa de ver os filhos realmente felizes é o que dá realmente felicidade. Nunca tive uma situação grave. Mas a gente está sempre aconselhando para que eles vejam que o certo é certo. Mesmo que venha o mundo contra, se você está andando certo, você está certo.

Você acha que o público vai conseguir separar as coisas, entender a proposta conceitual, artística, estética em detrimento do peso político que ele já carrega?

Eu discordo que ele tenha de carregar um peso político. Eu não tenho na minha trajetória de vida ligação com política e não vejo o filme como um filme político – político-social, sim, mas político-partidário, de jeito nenhum. Porque o que ele conta é uma história real, humana. Mas, claro, cada um vê o que quer.

Lula tem uma popularidade muito elevada, mas conta com o preconceito de uma pequena parcela da sociedade. Você acha que o filme pode influenciar alguém a quebrar esse preconceito e rever os conceitos? Você reviu seus conceitos?

Bom, eu fiquei muito surpresa porque não conhecia nada dessa história. E acho que, como eu, muita gente também não conhece. Com certeza o filme vai ser muito esclarecedor. Acho que uma vez que você entende de onde vem esse homem, o que a família dele teve de vencer, a forma incrível como ele chegou aqui, com certeza isso vai tocar pessoas.

Para o ano que vem está prevista a produção de um filme chamado Nunca Antes na História deste País, do José Padilha, que terá como pano de fundo episódios como mensalão, também com recursos de órgãos públicos, como é feito quase todo filme no Brasil. Você acha que isso é um indicador de que o país vive uma cultura democrática madura?

Com certeza. Nós vivemos uma democracia. Agora, vou falar da minha área, que é o cinema. Ele precisa se fortalecer como mercado. E o mercado é plural. Para ter mercado, ele não pode falar com uma parcela da população. O cinema é um lugar aonde as pessoas vão para se distrair, se divertir e também se informar. É uma atitude cultural importante. Então tem de ter a comédia, o drama biográfico, o policial, o cult, tudo isso.

A popularidade do Lula pode estimular pessoas que não têm o hábito de ir ao cinema a descobrir o cinema?

Ainda temos uma luta intensa de mercado. Muitos filmes são produzidos e ficam restritos aos festivais, não têm espaço para ser exibidos.

O filme tem força para ser indicado para concorrer ao Oscar?

Eu não tenho esse tipo de expectativa, mas acho que ele é grandioso, é um épico, tem essa pegada. E não poderia ser diferente. É baseado no livro da Denise (Paraná), que é desse tamanho, não tinha como ser um filme corriqueiro, passar batido.

E como é atuar no mesmo espaço que a filha?

A gente não tem muitas sequências. O único diálogo que a gente tem foi criado pelo Fábio Barreto, porque ele não existe no livro. Mas foi muito bacana, porque ela é uma continuação, ela é minha filha, é a terceira geração de artistas da nossa família, que começou com meu pai.

E já foi “Mariazinha” Moura, né?

(Risos) É, foi Mariazinha Moura (Cléo Pires interpretou a personagem Maria Moura em sua fase criança, na minissérie Memorial de Maria Moura, 1994), e está numa carreira independente, linda, maravilhosa, desabrochando. Então, sem dúvida, é muito emocionante.

Prefere trabalhar em cinema ou novela?

São coisas bem distintas, né? Eu gosto muito de fazer televisão, desde que eu me entendo por gente eu faço, então é um lugar onde me sinto em casa. Mas o cinema tem esse glamour, que é uma coisa só do cinema.

Falando em glamour, você está morando em Paris desde 2008. Essa escolha é por causa das virtudes da capital francesa ou dos defeitos do Brasil?

Nem uma coisa, nem outra. Estou em Paris porque o meu marido, Orlando Morais, que é cantor e compositor, recebeu o primeiro visto chamado Competência e Talento, dado pelo governo francês. De um total de dez concedidos a gente do mundo todo, ele recebeu o primeiro. Esse visto dá direito a ir trabalhar no governo francês por pelo menos três anos, renováveis. Então eu estou lá junto com os meus filhos, usufruindo dessa oportunidade. E, quando está a família toda junto, a gente se adapta a tudo. E por que não viver em Paris, né?

Cidadezinha sem graça, não?

É uma oportunidade maravilhosa.

Voltando um pouquinho lá para Dancing Days, você chegou a ser censurada pelo Juizado de Menores, que a proibiu de emitir opiniões sobre educação. Como foi isso?

Foi porque critiquei a escola e o modelo de ensino. Eu tinha 14, 15 anos, mas só falei uma coisa que eu tinha vivido. Tive dificuldades na escola porque eu trabalhava. Não podia fazer nada se os outros alunos não trabalhavam. Eu era um estranho no ninho, mas a escola em que eu estudava era Montessoriana, tinha todo um sistema diferente das convencionais. Então eu entendia que também ela devia ver de forma diferente uma aluna que estudava e já tinha uma profissão.

Por que eu tinha de primeiro terminar os meus estudos pra depois ir procurar uma profissão, se minha profissão já estava ali, se eu tinha nascido e sido criada dentro daquilo, estava ganhando o meu dinheiro? Sendo uma escola especial, por que ela não podia agir de uma forma especial? Então foi essa a crítica que eu fiz, e o Juizado de Menores não gostou. Também teve uma vez em que fui trabalhar num desfile – na época do Dancing Days o Lauro Corona e eu fomos contratados por uma grife, a Ellus, prá fazer 12 desfiles pelo Brasil, cada mês num estado diferente – e numa das cidades o desfile era numa boate, e me proibiram de fazer porque eu era menor.

Aí reclamei, porque tinha tantas crianças também menores na rua, sem apoio, sem saúde, sendo exploradas, sendo abusadas. Por que eles não iam tirar as crianças das ruas e estavam me tirando ali, onde eu estava ganhando meu dinheiro, com contrato, não estava sendo explorada? Foi por essas coisas que o Juizado implicou comigo.

No filme você vive uma mulher muito segura de que seus filhos precisam de educação e oportunidade. Dona Lindu batalhou muito para que alcançassem isso. E a televisão, olhada não pela sua atuação profissional, mas pelo ponto de vista de quem está ali no sofá, deu alguma contribuição para melhorar a educação no país, a melhorar as oportunidades?

Eu acho que sim. Acho que é o veículo mais abrangente que nós temos. Principalmente porque nosso nível de analfabetismo é muito alto. Então, se você tem acesso à informação sem que precise ler, é realmente importante. Não só no Brasil como no mundo todo é inegável a importância dela. Agora, o uso que é feito dela passa por outras questões, pelo âmbito do mercado, do lucro e outras coisas.

Você começou muito pequenininha a conviver com gente muito grande. Quais foram os grandes atores que marcaram a sua formação, que mudaram sua vida?

Eu tive realmente oportunidade de conviver com gente incrível. Tenho até receio de dizer nomes porque foram tantos que tenho medo de cometer alguma injustiça. Tenho tido muita sorte desde o início, talvez pelo fato de meu pai também ser ator, conviver muito comigo, me orientando, foi sempre uma trilha a seguir. Tive oportunidades maravilhosas de trabalhar com grandes atores, grandes diretores e também autores que me deram personagens incríveis. Até, muitas vezes, personagens que eu nem tinha idade prá fazer, maturidade prá interpretar, como foi o caso da Heloísa Ramos (mulher de Graciliano, em Memórias do Cárcere).

Você chegou a viver personagens com tanta força a ponto de mudar seu jeito de viver a vida?

Mudar não digo, porque meus pais sempre foram muito presentes e a gente sempre teve muita liberdade de tratar de qualquer assunto. Então, realmente não houve nada assim que me fizesse mudar, mas vários personagens me tocaram muito, como é o caso da dona Lindu. Eu não tinha a menor ideia de que ela tivesse existido. Quando a conheci, pelo roteiro, ela me tocou profundamente, ela fala de uma coisa que me é muito cara, que são meus filhos, a minha família.

Ela tem alguma coisa de Maria Moura, ou nada a ver?

Acho que não. Acho que tem uma bravura, mas não só da Maria Moura, é uma bravura dos heróis. Os heróis são naturalmente bravos e naturalmente se colocam à disposição para sofrer pelos outros. Há um espaço livre para o povo caminhar no seu ritmo e os heróis recebem uma carga maior de sofrimento.

E, se a história não está boa, são os que vão começar a mudá-la, não?

Exatamente. Então ela, Lindu, tem um quê de heroína, sem dúvida.

Uma boa parte dos atores que hoje atuam na televisão é formada nas academias, nas passarelas. Esse tipo de relação da dramaturgia com padrões obrigatórios de beleza não pode pôr em risco a qualidade da dramaturgia brasileira?

Eu acho que a gente já passou por esse momento, que hoje já se entende que as pessoas precisam ter uma formação, ter estrutura. Porque, quando se faz uma novela, o buraco é bem mais embaixo. Um jovem ator que estrela hoje uma novela, a quantidade de coisas que ele tem de aprender a driblar na vida normal dele, para que continue tendo bons convites, para que consiga construir a sua carreira e continue sendo respeitado, é incrível.

Muito diferente de quando eu comecei, por exemplo, que a gente ainda podia errar. Hoje existe uma cobrança muito maior e já se entende que há uma responsabilidade enorme em colocar um ator para estrelar uma novela, porque ele tem de estar preparado artisticamente e como pessoa; ele precisa ter um suporte emocional muito forte. Já não é como no tempo em que os atores saíam da vida de modelo diretamente para dentro da novela. Além disso, não é porque uma pessoa é modelo que não pode virar atriz. Não tem nada de errado nisso, e é preciso ter ferramentas para isso, não é só decorar o texto e falar.

Quais são as principais características da dona Lindu que você vê no filho dela?

No filho dela eu não sei… Não o conheço tanto assim. Tive um encontro com ele. Mas vejo uma procura pelo bom senso que eu acho que é muito dela. Sem dúvida a perseverança também, essa busca por… ela não é mulher de criar caso. Ela podia até bater, podia ralhar, mas era muito pautada, muito equilibrada.

Você é fumante? Como é que é trabalhar num filme inteiro em que o protagonista é o cigarro? Fale um pouco desse seu outro filme que está para estrear, É Proibido Fumar.

É um filme leve, jovem, tem uma pegada de humor velado, uma crítica também, misturada com non sense. Gosto muito do trabalho da Ana Muylaert, do estilo dela. A capacidade dela de organização é uma coisa que eu nunca vi. Ela se prepara para filmar com se estivesse preparando uma aula. Tudo superorganizado. É bacana, porque se algo dá errado ela tem como consertar. Foi um processo delicioso, a gente se divertiu muito. Eu não conhecia o Paulo Miklos como ator, e foi uma grande surpresa, porque ele é uma pessoa extremamente doce, agradabilíssima, foi um príncipe. E eu gostei muito do resultado. Não tem como descrever. É um filme legal. As minhas filhas acharam o filme fofo (risos).

Fale um pouquinho de seu Antônio Carlos Pires, o Joselino Barbacena.

Ele e minha mãe são exemplos, não digo modelos de perfeição, mas bons exemplos de pais. Muito abertos, muito disponíveis, queriam que a gente tivesse acesso a informação, acesso ao mundo. Nunca se fecharam para nenhum assunto, nenhuma situação. Acontecesse o que acontecesse, minha irmã e eu tínhamos com quem contar sempre.

Podemos voltar a falar depois que você vir o filme?

Podemos, claro.

Notou muita diferença entre essa montagem finalizada e aquele rascunhão que você tinha visto?

Realmente o som ficou diferente. A luz também, muda totalmente a cor, a temperatura fica bem mais quente, mais intensa. Fiquei muito feliz.