Além da rede social

Podcast analisa o papel da mídia comercial na ascensão do ódio e do extremismo

“Ondas de Ódio”, podcast fruto de produção acadêmica, reúne pesquisadores para pensar no fenômeno da ascensão da extrema direita no Brasil

arquivo pessoal/instagram
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Bolsonaro aglutinou o discurso do ódio: "Empresários de comunicação não só compactuaram com o discurso intolerante, como ajudaram a amplificá-lo"

São Paulo – A extrema direita ganhou protagonismo repentino no Brasil e no mundo na última década. Em países como o Brasil, vozes defensoras de regimes autoritários e ditatoriais estavam arrefecidas pela jovem democracia que sofreu para derrotar a ditadura civil, militar e empresarial que vigorou entre 1964 e 1985. Contudo, agora estas ideias voltaram sob símbolo maior do ex-presidente inelegível, Jair Bolsonaro (PL). Como isso aconteceu? A mídia comercial tem papel nessa história? São essas perguntas que o podcast Ondas de Ódio tenta responder.

A série de conversas com pesquisadores das comunicações estreia amanhã (20) nas principais plataformas de podcast, como Spotify, SoundCloud, Deezer, Google Podcast e Radiotube. A RBA conversou com uma das idealizadoras do projeto, Rosangela Fernandes, coordenadora da organização não governamental Criar Brasil, que luta pela democratização da informação no país. Ela destaca que existe um papel inegável das redes sociais para o avanço do extremismo. Contudo, é equivocada a percepção de que a imprensa comercial, particularmente as emissoras de televisão, não ajudaram no processo.

Entretenimento, mídia e extremismo

“A extrema direita vende a ideia de que não precisa e não se alia à mídia tradicional, que não depende de intermediários e se comunica diretamente com a população via redes sociais. No entanto, um olhar atento não deixa dúvida de que os empresários de comunicação não só compactuaram com o discurso intolerante, como ajudaram a amplificá-lo”, afirma Rosangela. Assim, o podcast, que tem origem em produção acadêmica, busca traçar um panorama sobre como isso aconteceu.

Inicialmente, serão três episódios. “A pesquisa que dá origem ao podcast mostra que o ódio sempre esteve presente na TV, estimulando o preconceito e a discriminação. O que Bolsonaro e seus aliados fizeram foi acionar essa cultura da hostilidade para ampliar seus seguidores e chegar ao poder. Entender essas alianças é fundamental para que os responsáveis não sejam ocultados”, explica a mídia-ativista.

Os episódios ainda tratam da histórica convergência de valores e interesses entre políticos extremistas e donos de emissoras. Além dos donos em si, programas jornalísticos populares e de entretenimento, apresentadores e comentaristas da TV aberta. Um dos pontos de análise, por exemplo, é o da presença fiel de Bolsonaro em programas como SuperPop, da RedeTV; CQC, da Bandeirantes; Ratinho e Alerta Nacional, do SBT.

Discurso conjunto

Além de programas que misturam sensacionalismo e entretenimento, também é relevante para a pesquisa o papel dos telejornais policialescos. “Os episódios fazem uma viagem no tempo, resgatando os programas policiais que praticam o chamado ‘populismo penal midiático’, que julga, condena e, em alguns casos, prega a pena de morte, sem direito a defesa. Revelamos como Jair Bolsonaro se aliou a esse tipo de programação e também a programas de entretenimento para ganhar espaço”, comenta Rosangela.

“A retórica de ataque aos direitos humanos fundamentais foi utilizada para garantir audiência para as emissoras e votos para a extrema direita. O resultado, foi o retrocesso e o abalo à democracia no Brasil. As investigações recentes não deixam dúvidas de que esse discurso preparou ambiente para o que seria o objetivo final: o golpe de Estado”, completa.

E o resultado não poderia ser diferente. Durante o governo Bolsonaro, houve um processo de “pagamento” deste serviço prestado ao ódio, comenta Rosangela. “A análise também desvela os interesses econômicos envolvidos: como o sistema midiático se rendeu em busca de verbas e prestígio e como as emissoras aliadas foram recompensadas”.

Ascensão do mal na mídia

Entre os entrevistados estão as professoras Suzy dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e orientadora da pesquisa; Janaíne Aires, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); e Helena Martins, da Universidade Federal do Ceará (UFC), além do professor João Cezar de Castro Rocha, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Em sua participação, Cezar comenta que a ascensão da extrema direita é “o grande fenômeno político das primeiras décadas do século 21”. “A extrema direita chega ao poder nas décadas iniciais do século 21 vencendo eleições livres e democráticas. Devemos reconhecê-lo. Isso quer dizer que a extrema direita, hoje, ela conquista corações e mentes e mãos, como disse recentemente o Papa Francisco. (…) O nazifascismo chegou ao poder nos anos 20 e 30, lançando mão de expedientes, os mais violentos possíveis”, afirma.

Então, é importante analisar, sob esta ótica, como o discurso extremista ganhou projeção por meio da mídia. Como explica a professora Suzy dos Santos, a televisão teve papel essencial para represar o ódio que culmina na ascensão destes grupos. “Discurso de ódio no Brasil é algo que é anterior a este momento da extrema direita, retomando, retomando espaços. (…) Então, o ódio não é só o produto da rede social. A rede social reverbera como reverbera tudo. No entanto, a rede social, ela se usa de um discurso que estava muito presente no rádio e na televisão.”

A pesquisa e o podcast

Ondas de Ódio é uma série original do PodCriar, podcasts do Criar Brasil, com apoio da Fundação Heinrich Böll e parceria com o Grupo de Pesquisa em Políticas e Economia da Informação e da Comunicação (Peic/UFRJ). Trata-se de uma série que apresenta os primeiros resultados da pesquisa de doutorado Discurso de ódio na TV: a legitimação da retórica bolsonarista através do ataque à dignidade humana, às instituições e à democracia, desenvolvida no Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação da UFRJ por Rosangela e coorientada pelo professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) João Paulo Malerba, ambos narradores, roteiristas e idealizadores dos episódios. 

Como explicam os organizadores, o podcast busca ampliar o impacto da produção acadêmica. Esta, por sua vez, trabalha para entender os fenômenos sociais mais recentes e relevantes. “A série propõe uma viagem no tempo, abordando desde as raízes clientelistas do sistema midiático brasileiro até o processo de formação da nossa sociedade, marcado por desigualdades e violências estruturantes, para desvendar os entrelaçamentos atuais entre discurso de ódio, mídia e política.”


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