Consternação e revolta

Após críticas, PM ligado ao massacre do Carandiru desiste de secretaria no Ministério da Justiça

Secretário da Administração Penitenciária de São Paulo, Nivaldo César Restivo havia sido indicado pelo futuro ministro da Justiça, Flávio Dino, para a Secretaria Nacional de Políticas Penais. O coronel é um dos policiais envolvidos na ação que assassinou 111 presos do Pavilhão 9 em 1992

Alexandre Carvalho/Governo de São Paulo
Alexandre Carvalho/Governo de São Paulo
Restivo chegou a ser indiciado por participação no espancamento de 87 pessoas privadas de liberdade durante o Massacre do Carandiru, mas não foi responsabilizado porque o crime prescreveu

São Paulo – O coronel da Polícia Militar Nivaldo César Restivo desistiu, nesta sexta-feira (23), de assumir a Secretaria Nacional de Políticas Penais. Em nota, divulgada pelo G1, Restivo alegou que não conseguiria conciliar o trabalho com questões familiares. A indicação do coronel para a gestão penal havia causado “consternação” e “revolta”. Entidades e movimentos sociais rejeitaram a escolha do futuro ministro da Justiça, Flávio Dino.

Em documento assinado nesta quinta (22) pela Agenda Nacional pelo Desencarceramento, eles exigiram a retirada do nome sugerido que, de acordo com a entidade, “não representa uma gestão comprometida com a Lei de Execução Penal, não respeita os Direitos Humanos e tampouco deveria ainda exercer cargo público e/ou de confiança”. 

Titular da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo desde 2019 e coronel da Polícia Militar, Restivo é um dos PMs envolvidos na operação que assassinou 111 presos no Pavilhão 9 do Complexo Penitenciário do Carandiru, em 1992. Neste ano, o caso que entrou para história como “Massacre do Carandiru” completou 30 anos de impunidade. Então 1º tenente do 2º Batalhão de Choque da PM, Restivo foi acusado de formar um corredor para espancar os presos sobreviventes. 

Ligação com o Massacre do Carandiru

O militar chegou a ser indiciado por participação no espancamento de 87 pessoas privadas de liberdade, mas não foi responsabilizado porque o crime prescreveu. Na carta, a Agenda pelo Desencarceramento ainda lembrou que, em 2017, ao ser empossado como comandante-geral da PM, Restivo classificou o morticínio como “legítimo e necessário”. Restivo acabou, contudo, sendo anunciado na quarta (21) por Dino para liderar as políticas penais do próximo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O que surpreendeu o movimento social. 

“Neste ano de 2022, em que se completaram 30 anos desse episódio cruel que ficou marcado na história do nosso país, deveríamos honrar a luta por memória, verdade e justiça, reparando os sobreviventes e familiares, combatendo e prevenindo a tortura e os massacres promovidos pelas instituições do sistema penal brasileiro. Entretanto, o Estado segue normalizando o cenário de violação e negação de direitos, que deveria ser completamente inadmissível em uma dita democracia”, contestou a Agenda. 

Mais contradições

Em um trecho da carta a Dino, o movimento ressaltou que a indicação de Restivo era contraditória com a política prometida pela governo Lula, de combater retrocessos na área penal. A entidade lembrou também que “é Bolsonaro que sempre defendeu a tortura e torturadores”. E que, “por isso essa indicação de Flávio Dino nos causa, no mínimo, consternação e revolta”, ressaltaram. Nesta sexta (23), por exemplo, o presidente Jair Bolsonaro (PL) concedeu perdão a todos os policiais militares condenados pelo massacre do Carandiru. Esse foi seu último indulto natalino, antes de deixar o cargo no dia 1º de janeiro. 

“Restivo não pode seguir sendo condecorado com assunção de cargos cada vez mais relevantes como se seu histórico fosse de mérito, pois, com isso, o governo sinaliza descaso com a população mais afetada pela letalidade policial e pelo cárcere, isto é, as pessoas negras e pobres”, afirmava o movimento social. “EXIGIMOS que o nome sugerido seja retirado, pois não representa uma gestão comprometida com a Lei de Execução Penal, não respeita os Direitos Humanos e tampouco deveria ainda exercer cargo público e/ou de confiança”. 

Transição também critica

A Agenda avaliava que um policial no cargo de gestão do sistema prisional demonstraria a orientação de militarização do setor. O que aprofundaria uma lógica de autoritarismo e dificultaria a atuação da sociedade civil. A indicação do coronel também causou “constrangimento, decepção e vergonha” inclusive entre os integrantes do grupo de trabalho da transição nas áreas de Segurança Pública e Justiça. Eles também destacaram que as credenciais de Restivo não correspondiam aos esforços e às proposições da área técnica. E uma política antirracista de Justiça, como defendeu Flávio Dino, “não passaria de discurso vazio” se a indicação do coronel se confirmasse. 

O documento foi assinado por mais de 20 membros oficiais. Entre eles, professores universitários, pesquisadores, defensores públicos, advogados, servidores públicos do sistema prisional e um juiz. O grupo ainda advertia que a gestão prisional de Restivo em São Paulo “caminhou no sentido diretamente contrário ao que foi proposto por este GT”. “Em declarada ojeriza à democratização da política penal e tendo a Secretaria paulista retroagido em todas as frentes que o relatório do GT defende. Definitivamente, não corresponde ao perfil adequado aos esforços apontados no trabalho deste pelo grupo e constantes no plano de governo”, citam na carta. 

“Na expectativa de melhor avaliação dessa situação, nos colocamos à disposição para tratar de maneira mais detalhada o assunto. Não consideramos que a participação ampla no trabalho de transição tenha sido apenas uma encenação. Todos temos esperança de um governo verdadeiramente democrático e isso, necessariamente, inclui a esfera da sociedade onde, desde 1988, homens e mulheres negros e pobres, presos e seus familiares, esperam ansiosamente a chegada dos Estado democrático e de Direito. Inclusive qualquer pretensão de uma política antirracista, como tem sido propalado pelo novo governo não passará de discurso vazio se não levar em consideração a mais clara expressão do racismo brasileiro, o sistema prisional”, concluem. 

Altos acertos

Esta é a segunda vez que uma indicação do futuro ministro da Justiça provoca desgate entre aliados do governo eleito de Lula. Na terça (20), Flávio Dino havia anunciado para o comando da Polícia Rodoviária Federal (PRF) um agente da corporação da Operação Lava Jato Jato que apoiou a prisão sem provas do ex-presidente Lula. Diante das críticas, ele reconheceu a polêmica e voltou atrás na decisão. 

O advogado e professor de direito internacional e direitos humanos na Fundação Getúlio Vargas (FGV), Thiago Amparo, fez um balanço em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo apontando que a indicação do coronel Nivaldo César Restivo seria “o maior erro” de Flávio Dino, que vinha acertando na composição dos nomes para o alto escalão do ministério. Para o jurista, o futuro ministro vem alinhando pluralidade com o “frescor de novas propostas de país”. 

Como na indicação da advogada Sheila Carvalho para a Assessoria Especial Direta em Assuntos de Direitos Humanos. Ativista da Coalizão Negra por Direitos, ela também faz parte do grupo Prerrogativas. E na nomeação da também advogada e militante do movimento negro Tamires Sampaio. Ela deve assumir como coordenadora do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), entre outros nomes. Com exceção de Restivo, “Dino escolheu os melhores combatentes”, destacou Amparo.

Redação: Clara Assunção