Influências

Itamaraty mediou compra de cloroquina da Índia por empresa de apoiador de Bolsonaro

Conversas entre o Ministério das Relações Exteriores e empresa indiana revelam que embaixador do Brasil na Índia intercedeu para favorecer a compra da substância por empresa chefiada por apoiador de Bolsonaro

Reprodução
Reprodução

São Paulo – O Ministério das Relações Exteriores intermediou a compra de cloroquina da Índia pela empresa Apsen Farmacêutica. O presidente da Apsen é Renato Spallicci, um fervoroso apoiador do presidente Jair Bolsonaro. As informações foram obtidas pela agência de dados Fiquem Sabendo, especializada em Lei de Acesso à Informação (LAI).

A troca de mensagens obtida pela agência revela um pedido de 100 quilos de sulfato de hidroxicloroquina por US$ 155 mil (cerca de R$ 821.500), matéria prima para a produção do medicamento Reuquinol. Nas mensagens entre autoridades indianas e o embaixador brasileiro em Nova Deli, Elias Luna Santos, aparece claramente como compradora e beneficiada da transação a Apsen Farmacêutica, do bolsonarista Spallicci.

Querendo mais

Luna ainda fala sobre pedidos maiores chegando a 1.330 quilos do composto. Ele cita diretamente o relacionamento da Apsen com o laboratório indiano IPCA Laboratories e busca exceções para o pedido, já que naquele momento, haviam barreiras para a exportação da cloroquina pelo país asiático. Por fim, o embaixador pede celeridade no processo.

“Seguindo nossa conversa por telefone, o governo do Brasil pede para o governo da Índia para que garanta ao nosso país uma exceção à proibição corrente na exportação de hidroxicloroquina da Índia. Existe a possibilidade de mudança nas regras que permitam uma exceção. Estamos cientes de que vocês têm uma importante relação de negócios com a empresa brasileira Apsen, que busca concluir o envio dos grandes pedidos negociados com a IPCA Laboratories e continuar a importar a substância de vocês. Entendemos que existia um pedido de 1,330 quilos que estava pronta para embarque além de outros pedidos totalizando 25,355 quilos”.

Mensagem trocada entre o embaixador do Brasil e autoridades da Índia, pede “exceção” para facilitar venda de hidroxicloroquina para a Apsen

Antigo post de Spallicci em uma rede social

Surgida a denúncia, Spallicci fez uma limpa em suas redes sociais. Pouco sobrou de seu apoio explícito ao presidente Bolsonaro. Ficando claro apenas sua defesa da cloroquina, ao lado de vários ataques ideológicos à China, por exemplo.

Garoto propaganda

A cloroquina – e seu composto, a hidroxicloroquina – é um medicamento sem eficácia contra a covid-19, de acordo com estudos amplos chancelados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Entretanto, Bolsonaro, durante toda a pandemia, defendeu e forçou a recomendação do medicamento aos brasileiros. Estudos indicam que, além de ineficaz, o composto pode desencadear efeitos colaterais, como problemas cardíacos graves. Em abril, a França chegou a divulgar mortes por complicações no coração em usuários do medicamento em terapia contra a covid.

Mas a ciência não fez com que Bolsonaro recuasse. Até uma das suas últimas aparições públicas, em entrevista concedida na sexta-feira (15), recomendou a cloroquina além de outros medicamentos sem comprovação, como a ivermectina. “As pessoas morrem porque não usam medicamentos experimentais, cloroquina, ivermectina, Anitta”, disse, em entrevista à TV Band.

Ainda em abril, o consumo no Brasil da cloroquina como matéria-prima cresceu 358%, de acordo com o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma). Boa parte dessa produção passa pela Apsen, de Spallicci, que aumentou significativamente a produção do medicamento Reuquinol, cujo princípio ativo é a hidroxicloroquina.

Bolsonaro chegou a fazer propaganda aberta do Reuquinol. Ele mostrou o medicamento em inúmeras lives que faz semanalmente, apresentou para líderes do G20 em reunião de cúpula realizada em março, e chegou até a apontar uma caixa do remédio de seu apoiador para uma das emas que circulam pelos jardins do Palácio da Alvorada.

Dias antes do colapso do sistema de saúde em Manaus, em que hospitais ficaram sem oxigênio para tratar seus pacientes, o ministro da Saúde, Eduardo Pazzuelo, em visita à cidade, mostrou-se descontente ao saber que o chamado “tratamento precoce” não estava sendo indicado para a população. Disse ser “inadmissível” que médicos não receitassem as substâncias do coquetel “inventado” pelo governo Bolsonaro como eficaz contra a covid. A comunidade científica de todo o mundo afirma claramente que não existe tratamento precoce contra a covid-19 e que, além da vacina, o correto é manter o distanciamento social possível, além de usar máscaras e higienizar as mãos constantemente.