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Forças Armadas e Polícia Militar aumentam controle sobre órgãos ambientais

Ocupação de cargos por militares cria clima de animosidade com servidores, emperra decisões importantes e ameaça conhecimento acumulado

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Desmatamento na Amazônia: relaxamento da fiscalização contra ações ilegais com entrega de órgãos ambientais aos representantes da área de segurança

Rio de Janeiro – A nomeação de 21 militares para postos de segundo e terceiro escalões no Ministério da Saúde em plena pandemia de covid-19 chamou a atenção para o fato de que a ocupação dos órgãos do governo federal por agentes das forças de segurança (militares, policiais e bombeiros) continua acelerada mesmo durante a crise sanitária, política e econômica que assola o país. Esse processo ocorre em diversas áreas, mas é sentido de forma mais dolorosa por aqueles que atuam em defesa do meio ambiente e assistem impotentes ao aparelhamento de órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), ambos entregues a policiais militares ou submetidos em suas operações ao controle direto do Exército.

O caso do ICMBio é emblemático. A diretoria do Instituto, outrora ocupada por técnicos ambientais e especialistas, é hoje composta em sua totalidade por integrantes da Polícia Militar do Estado de São Paulo, nenhum deles com histórico de proteção da biodiversidade ou experiência em gestão de Unidades de Conservação (UCs). Iniciada em fevereiro e intensificada este mês, a reestruturação das Coordenações Regionais do ICMBio (de onze passarão a cinco, apenas uma por região do país) obedece à mesma lógica de aparelhamento, com quatro delas sendo ocupadas por policiais militares. As novas unidades de gestão passam a se chamar Gerências Regionais, e as demais serão “rebaixadas” a Bases Avançadas, subordinadas às cinco GRs. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) ainda não publicou as normas que estabelecem como essas estruturas irão funcionar.

Segundo uma minuta divulgada pelos servidores, “a intervenção militar na cúpula do ICMBio já se faz sentir em vários aspectos”, como qualidade técnica dos procedimentos, animosidade no ambiente de trabalho, eficiência e gestão política em decisões que afetam diretamente a conservação dos ecossistemas protegidos pelas UCs: “Preocupa enormemente se a política de militarização e ingerência irá se expandir às áreas finalísticas. De natureza distinta dos cargos voltados para política institucional e macroplanejamento, os cargos finalísticos demandam decisões diárias de caráter técnico e prático com interferência direta nos territórios e seus recursos, assim como na relação com populações locais”, diz o documento.

Outra característica observada nas nomeações para o ICMBio, segundo a minuta, é a masculinização das posições de poder: “A desigualdade de gênero é constitutiva de nossa sociedade em geral, mas vem sendo pouco a pouco desconstruída na medida em que a luta feminista e os estudos de gênero a colocam em pauta. Um retrocesso nas conquistas internalizadas pelo Instituto no que diz respeito à atual composição da diretoria e das Gerências Regionais pode significar não só a misoginia inerente, mas uma tendência à fragilização de direitos”.

Para o especialista em direito ambiental Rogério Rocco, que foi superintendente do Ibama no Rio de Janeiro no governo Lula e atualmente é diretor da Associação dos Servidores Federais da Área Ambiental no Estado do Rio de Janeiro (Asibama), a sociedade organizada precisa ficar alerta: “O que nós estamos vivenciando hoje, especialmente no ICMBio, é a militarização da instituição. Além do presidente e dos quatro diretores policiais, há uma crescente substituição também nas Unidades de Conservação. O Parque Nacional da Tijuca (RJ) e o Parque Nacional de Itatiaia (RJ) são exemplos recentes, além de outras UCs pelo Brasil afora que têm sido ocupadas por militares”.

Presidente da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema Nacional), Denis Rivas afirma que os efeitos mais dramáticos da reestruturação do ICMBio serão sentidos na Amazônia, onde hoje existem cinco Coordenações Regionais que serão transformadas em uma única Gerência Regional: “A reestruturação junta uma série de cargos, o que possibilitou ocupar áreas imensas do Brasil sob o domínio de policiais militares. Para conseguir acomodar os PMs com bons salários, o governo juntou uma série de Unidades de Conservação”.

Essa junção, afirma Rivas, torna impossível na prática a boa gestão de áreas gigantescas de floresta: “Tem casos de até quatro milhões de hectares envolvendo o sul do Amazonas e o norte de Rondônia. A lógica disso não é beneficiar a gestão das UCs. Pelo contrário, estamos percebendo que é uma tentativa de amordaçar os servidores, colocá-los debaixo das asas dos PMs e só sair a informação que o governo quiser e os PMS permitirem”.

Para o presidente da Ascema, o fato de o ICMBio estar há três meses sem um coordenador de Fiscalização é “uma demonstração muito clara” de que a presença dos policiais militares tem por trás a intenção de afrouxar o trabalho dos fiscais do Instituto: “Em um período de pandemia, com o desmatamento batendo recordes, deixar um posto estratégico como esse sem ninguém à frente significa que decisões demoram a ser tomadas ou não são tomadas. Há falta de interesse em fazer que a fiscalização funcione de uma maneira eficaz e articulada”, diz Rivas.

Lei e Ordem

Paralelamente à reestruturação do ICMBio, foi baixada pelo governo uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO), válida inicialmente até 10 de julho, que determina o emprego das Forças Armadas no combate ao desmatamento da Amazônia. Na prática, isso significa subordinar as operações de fiscalização do Ibama no bioma aos comandos militares. Isso acontecerá este ano durante a segunda etapa da Operação Verde Brasil, prevista para durar um mês, ao custo de R$ 60 milhões. A Operação Verde Brasil 1, realizada em 2019 ao longo de dois meses, custou aos cofres públicos R$ 124,5 milhões.

“Quando o Ibama ou o ICMBio vão a campo, é importante terem o auxílio da Polícia Militar, da Força Nacional de Segurança ou do Exército porque a fiscalização não é uma força de combate. Mas, ao subordinar ações de fiscalização dos órgãos ambientais às Forças Armadas, muitas coisas ruins podem acontecer”, afirma Elizabeth Uema, secretária-executiva da Ascema Nacional.

O planejamento e a coordenação de uma operação de fiscalização, lembra Uema, devem ser realizados com conhecimento e responsabilidade ambiental: “Principalmente, a escolha de onde vai se dar a operação. Normalmente, as operações do Ibama tinham um serviço de inteligência que se pautava em mapas e imagens de satélite. Há toda uma avaliação ambiental do processo antes de se iniciar a operação. Se você tira isso do órgão ambiental, corremos o risco de, por desconhecimento ou má-fé, escolher áreas onde não interessa a determinados grupos que haja fiscalização”.

A presença dos militares no comando das operações do Ibama pode também dificultar a democratização das informações sobre a fiscalização, teme a secretária-executiva da Ascema: “Não haverá controle de qual local será fiscalizado e de quem vai fiscalizar. Só daqui a algum tempo poderemos verificar o resultado dessas operações. Elas serão feitas lá nas Terras Indígenas da Amazônia onde estão acontecendo todo esse desmatamento e este ano a coisa vai pegar fogo? Ou serão feitas numa serrariazinha lá no interior do Mato Grosso como foi nessa última operação midiática, que teve imprensa e helicóptero?”, indaga.

Inimigo Número Um

Elizabeth Uema ressalta também o perigo de se perder o conhecimento de especialistas dentro dos órgãos ambientais: “A expertise dos fiscais do Ibama e do ICMBio é importante porque apenas eles têm todo o conhecimento e know-how dos biomas onde se dá a fiscalização e também o discernimento do que é crime ambiental. Quando falamos de desmatamento, não é só árvore. É também o tráfico de animais e uma série de outros crimes ambientais relacionados, além da questão extra-ambiental que é a grilagem de terras públicas e a invasão de reservas indígenas”, diz.

Rogério Rocco pondera que não é à presença de militares em si que provoca a crítica dos ambientalistas, mas sim o aparelhamento das instituições: “Nós temos bons quadros nas estruturas militares que conseguem atender as finalidades dos órgãos ambientais e as regras de gestão de áreas protegidas. Isso em si não é um problema, mas há uma ação coordenada de substituição dos quadros técnicos, dos principais postos-chave e das principais áreas protegidas brasileiras”, diz.

O especialista em direito ambiental avalia que essa troca faz parte de uma política deliberada de enfraquecimento das ações dos órgãos ambientais: “Isso é grave porque os servidores ambientais de carreira, com formação na área e larga experiência, estão sendo sistematicamente trocados por militares, a maior parte deles sem formação adequada. Os servidores temem, inclusive, que tentem impor ao Ibama e ao ICMBio um regime de disciplina militar, o que é completamente inadequado”.

Denis Rivas faz um desabafo: “O Ibama e o ICMBio já têm um quadro reduzido, que tira leite de pedra. O sucateamento e a redução do orçamento já vêm de anos, mas nada se compara ao que estamos vivenciando agora. A gente virou inimigo público número um da Presidência da República, algo que sentimos todos os dias no trabalho de campo. Os desmatadores estão se sentindo representados dentro do Ministério do Meio Ambiente no atual governo”.


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