Delírio do Poder

‘Precisamos lutar por um país que não se torne fascista’, diz Marcia Tiburi

Em novo livro, filósofa e escritora afirma que o governo Bolsonaro promove culto à ignorância e imbecilização coletiva. "Com medo, as pessoas se escondem atrás de mistificações"

Cris Faga/Folhapress)
Cris Faga/Folhapress)
Ato em apoio ao presidente Bolsonaro e à Operação no domingo (30). Presidente e governo que despertam o que há de pior nas pessoas

São Paulo – De acordo com a filósofa e escritora Marcia Tiburi, o Brasil de Bolsonaro já ultrapassou a fase de um “protofascismo” – quando pessoas comuns são capazes de imaginar coisas terríveis, mas não de realizá-las – para a encenação fascista propriamente dita, encarnada não apenas na figura do capitão-presidente, mas também em figuras como o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), que comanda o disparo de metralhadoras contra comunidades pobres do alto de um helicóptero, ou ainda juízes e procuradores capazes de sustentar um processo judicial na base da mentira que levou à condenação política do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Em entrevista ao jornalista Glauco Faria, para o Jornal Brasil Atual, nesta terça-feira (2), Marcia diz que o país “corre risco bastante sério de levar essa loucura a um termo ainda mais infeliz”. Esse doença social, segundo ela, que mistura violência sistemática e discurso populista, é tema do seu livro, Delírio do Poder – Psicopoder e Loucura Coletiva na Era da Desinformação (Record), lançado em abril.

Contra o avanço do fascismo, ela defende a revalorização da política – não como um jogo de poder apenas, mas como o lugar da verdade nas relações humanas e do sentido da sociedade – e da democracia. “Precisamos lutar pelo nosso país. Isso implica lutar pela liberdade do preso político que é o nosso ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e lutar por um país que não se torne fascista, por um país que recupere a sua democracia. Mesmo que seja uma democracia muito precária, precisamos dela para fazer avançar. Tenho muita esperança que a gente vai conseguir, porque nem todo o Brasil é fascista. Ao contrário. A maioria não é.”

Recalque

A chave para o avanço do fascismo, no Brasil, segundo Marcia, está na dificuldade da sociedade, como um todo, em compreender processos e eventos históricos da nossa história que foram baseados na violência, como o genocídio indígena, a escravidão e as ditaduras. Em especial, sobre a participação cruel dos militares na política, a filosofa diz que o “bizarro” presidente colabora para reforçar esse recalque, tentando encobrir e ludibriar sobre a verdade do período histórico. É um momento de radical desorganização dos pensamentos e da linguagem, com a crença absoluta em algo, por mais estapafúrdio que seja, segundo ela.

Divulgação

‘É como se a imbecilização tivesse ocupado o lugar da inteligência’, diz a filosofa Marcia Tiburi

Segundo a psicanálise, o recalque serve como instrumento de autodefesa do indivíduo que acoberta involuntariamente ideias incompatíveis com a formação do próprio “eu”. “As classes sociais vivem recalcando umas às outras. Pobres recalcam que são pobres, ricos recalcam que oprimem os pobres. A burguesia recalca que reprime a pequena-burguesia, e assim vai. Existem relações muito mal resolvidas. A questão racial, por exemplo, é muito pesada, há um esforço em fingir que não somos uma sociedade que vive um racismo vergonhoso. Uma sociedade que mata e deixa morrer os jovens negros.”

Mistificação

Marcia diz que outra marca desse governo é o “culto à ignorância”. O delírio do poder, segundo ela, não tem caráter irracional, mas faz parte de uma lógica interna do governo Bolsonaro, que demoniza a lógica, o entendimento e o conhecimento, com a função de “desnortear” as pessoas.

“O que a gente vive hoje é uma grande mistificação. Mentiras são apresentadas como verdades, injustiças como se fossem justiça. É como se a imbecilização tivesse ocupado o lugar da inteligência. Não estou falando de nenhum tipo de xingamento ou puro julgamento, estou falando da incapacidade de discernir e compreender, e de uma falta de vontade de se relacionar com o outro tentando compreender o que ele fala, diz e como vê o mundo. A prepotência tomou conta. E o presidente faz um eterno elogio dessa prepotência, considerando que opiniões, por si só, são válidas de qualquer maneira.”

Para a filósofa, as pessoas fogem da verdade e se escondem atrás dessas mistificações vigentes. “É isso que está em jogo. Precisamos de mais pensamento, mais reflexão, mais filosofia, sociologia, psicanálise. Precisamos de educação de qualidade, de universidade e escolas públicas, de pessoas engajadas no processo de reconstrução da nossa cultura e da nossa lucidez.”

Ouça a entrevista na íntegra

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