Europa suspensa

Para especialista, Cameron poderá ser o premiê que ‘acabou’ com o Reino Unido

Possibilidade de autonomia dos escoceses em referendo refletirá em movimentos separatistas em países ao longo do continente europeu, diz professor da USP

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Campanha pela ‘sim’ à separação da Escócia do Reino Unido. Decisão pode levar a impactos geopolíticos

São Paulo – Desde a Segunda Guerra Mundial, a história do Reino Unido tem sido marcada pelo constante declínio com a perda de territórios e colônias. “Perder partes essenciais do Estado como a Escócia pesaria muito para o prestígio britânico”, acredita Kai Enno Lehmann, professor especialista em União Europeia do Instituto de Relações Internacionais da USP (Universidade de São Paulo). “Seria um péssimo legado para Cameron: ele seria lembrado como o primeiro-ministro que acabou o Reino Unido”, completa.

Nesta quinta-feira (18) os eleitores vão responde “Sim” ou “Não” se desejam a independência da Escócia. Se a escolha da população for pelo sim, será o fim dos 307 anos de união com a Inglaterra e a dissolução do Reino Unido.

Além disso, como reação em cadeia, tal decisão favorável à autonomia escocesa favoreceria também uma descentralização em outros países dentro do Reino Unido, como a Irlanda do Norte e País de Gales. “O status quo do Reino Unido morreu. Embora os membros do bloco tenham direitos para administrar seus próprios assuntos, eles vão querer cada vez mais poderes”, aposta Lehmann.

Para o especialista, a autonomia vai trazer muitas implicações não só pro Reino Unido, mas refletirá no próprio continente europeu de modo geral. “Sem dúvidas, a União Europeia quer evitar esse tipo de situação, já que há vários países com movimentos separatistas, como é o caso da Espanha – com a Catalunha e o País Basco – ou a região de Flandres, em que uma parte significativa quer se tornar independente da Bélgica”, compara.

Apesar do impacto que tal autonomia refletiria para regiões com forças internas de independência, não são todos países que permitem esse tipo de referendo. No caso escocês, a decisão de uma consulta popular foi uma decisão vinda de negociações entre o primeiro-ministro britânico David Cameron e o líder do governo autônomo da Escócia, o nacionalista Alex Salmond e, portanto, tem um status legal entre ambas as partes.

Em situações como as  da Espanha, da Bélgica e até a da península da Crimeia, assim como a da região pró-Rússia no leste ucraniano, a mesma força jurídica não prevalece, tanto para os líderes à frente do Estado, quanto para a comunidade internacional. Em diversas situações, o governo espanhol, por exemplo, já declarou que não reconheceria um plebiscito na Catalunha, classificando-o como ilegal, apesar da pressão dos 7, 5 milhões de habitantes catalães, que representa detêm 1/5 da riqueza espanhola.

Dupla ingenuidade

“Tenho a impressão de que o plano inicial dos separatistas escoceses era buscar mais autonomia dentro do Reino Unido, mas Cameron deu ultimato: ‘ou você fica ou você sai’. Digamos que ficaram duas opções extremas. Acho que Cameron tinha a expectativa que a Escócia fosse a favor da permanência. Ele não esperava pesquisas tão apertadas como estão agora”, acredita o especialista.

Hoje, quatro milhões de escoceses deverão responder à pergunta: “A Escócia deveria ser um país independente?”. Caso a maioria vote pelo “sim” no referendo, a Escócia colocará fim à união de 307 anos com Reino Unido, mesmo com a declaração de independência ocorrendo somente em 2016. Esta margem acirrada das pesquisas foi vista até mesmo a um dia do referendo, quando três pesquisas encomendadas por veículos britânicos deram ao “não” um apoio de 52% contra 48% do “sim”.

Para Lehmann, Cameron e os partidos britânicos se mobilizaram muito tarde, mas, ao mesmo tempo, os separatistas também não apresentaram um planejamento muito claro. “Quem vai ficar com os recursos naturais do Mar do Norte? Que moeda a Escócia vai usar? Ainda há muitas coisas a serem resolvidas caso seja favorável a uma autonomia”, diz.

“Acho que os dois lados foram muito ingênuos e o nível da campanha dos últimos dias tem sido razoavelmente baixo devido à qualidade da argumentação. Os dois lados principalmente nas últimas semanas não se destacaram em nível de debate”, critica.  Na semana passada, Cameron declarou em visita a Edimburgo que “ficaria com o coração partido” se as nações se separassem.

Outro ponto em jogo no debate da autonomia é a questão da permanência da Escócia na Commonwealth, a organização intergovernamental que mantém vínculos com o resto do território britânico e que conserva a rainha Elizabeth II como chefe de Estado. Tudo indica que, mesmo independente, a Escócia deve continuar a ser membro da Commonwealth.

Entretanto, o professor de Relações Internacionais comenta que a permanência na associação não traz nenhuma importância em termos de peso político e econômico. “É uma questão simbólica. Obviamente ter uma rainha é uma diferença importante, mas hoje ela tem apenas um poder cerimonial”, argumenta.

Para o especialista, independentemente do resultado, um debate acerca da ampliação de poderes dos países dentro do Reino Unido deve acontecer nas próximas semanas. “Como a Escócia fez parte do Reino Unido por mais de 300 anos, é muito difícil fazer previsões. Trata-se de uma situação inédita”, pondera.