Argentina

Eleições legislativas colocam projeto Kirchner novamente à prova neste domingo

Com Cristina afastada por problema de saúde e perspectiva negativa na votação de domingo, projeto à frente da Casa Rosada desde 2003 vê oposição à direita crescer

David Fernández/EFE

Com imensa força após eleições de 2011, projeto encabeçado por Cristina veio perdendo apoio

São Paulo – Com Cristina Kirchner afastada da campanha eleitoral por conta da recuperação de uma cirurgia, o oficialismo argentino enfrenta, neste domingo (27), uma dura disputa eleitoral – o pleito legislativo que irá renovar metade das cadeiras da Câmara de Deputados e um terço do Senado. Para a imprensa argentina e especialistas na política do país, a tendência é que o projeto kirchnerista (Frente para la Victoria) se enfraqueça e perca espaço para a fragmentada oposição ao governo federal.

Na Argentina, o voto para renovar as casas legislativas ocorre em lista, sendo que cada província do país elege de forma igualitária os senadores. Já os deputados são eleitos a partir de um sistema proporcional, no qual as regiões mais populosas indicam a maior parte dos representantes da Câmara. As eleições deste domingo podem fazer com que o governo perca a maioria necessária para aprovar os projetos mais audaciosos da gestão de Cristina Kirchner. Nos últimos anos, a Argentina aprovou, entre outras medidas, a estatização de empresas estrangeiras e a legalização do casamento igualitário.

Como a própria Cristina admitiu após a divulgação dos resultados das prévias legislativas, realizadas em agosto, na Argentina “así son las cosas, cambiantes”. Após ter se reinventado por volta de 2011, período em que as ideias de Néstor e Cristina haviam sido contestadas com força pela imprensa e por parte da população, o projeto recuperou a estabilidade. No entanto, o oficialismo atravessou 2013 com dificuldades visíveis – como as consequências causadas por repetitivos acidentes na decadente rede ferroviária da Província de Buenos Aires, que transporta milhares de trabalhadores todos os dias, as incertezas sobre a saúde de Cristina e as acusações que partem de todos os lados.

Isso porque a oposição ao governo da Frente para la Victoria não é composta por um único e demarcado setor, mas por um campo vasto e heterogêneo. Cristina é criticada por partidos de esquerda, por representantes do eixo conservador da política local e por peronistas que se dizem dissidentes do governo federal. Em Buenos Aires, a mais poderosa força opositora surge no partido Propuesta Republicana (PRO) de Maurício Macri, atual chefe de governo da cidade. Na província de mesmo nome, a principal ameaça reside na figura de Sergio Massa, prefeito de Tigre, a atrativa cidade que fica ao norte de Buenos Aires. Massa encabeça a lista da Frente Renovadora (FR) – partido do campo que poderia ser chamado de “peronismo conservador” – para a Câmara.
“O cenário aponta para uma derrota do governo”, afirma professor

Para o argentino Raul Enrique Rojo, professor nas áreas de Relações Internacionais e Sociologia na UFRGS, as eleições legislativas devem fazer com que a supremacia do governo Kirchner diminua no Congresso. “Desde as eleições primárias e obrigatórias que ocorreram em agosto, o cenário parece indicar uma provável derrota da situação, seja pelas mãos de outros peronistas, como na Província de Buenos Aires, com Sergio Massa, ou pelas mãos de alianças de centro-esquerda na cidade de Buenos Aires”, afirma o professor. No governo K, o líder da lista de deputados é Martín Insaurralde, prefeito de Lomas de Zamora.

“O único ponto que une estes partidos é o caráter de oposição a Cristina, mas a crítica é muito heterogênea. Há quem conteste a gestão econômica, há quem diga que o governo trai os ideais peronistas. As críticas podem ser tanto conservadoras como mais à esquerda”, comenta Raul Enrique Rojo. A menos de uma semana para as eleições que modificam a composição de forças das duas casas, é Sergio Massa quem aparece com maior intensidade nos jornais de oposição ao governo, como o Clarín. Massa foi elogiado pela administração que levou adiante em Tigre, uma cidade repleta de condomínios fechados e reconhecida por abrigar de forma segura os argentinos de emergentes contas bancárias.

Sergio Massa – lembra bem o professor Raul Enrique Rojo – tem como padrinho político o ex-presidente Eduardo Duhalde. “Duhalde foi também padrinho de Néstor Kirchner no início dos anos 2000. Foi ele quem tirou da cartola aquele desconhecido governador de uma distante província patagônica, a província de Santa Cruz, quando o país ainda atravessava a crise”, contou. Para Rojo, a candidatura do prefeito de Tigre apresenta um projeto tão populista quanto o atual, mas se ancora em propostas mais conservadoras. A cautela nas políticas do Estado, aliás, poderá ser inevitável após as eleições legislativas – com a força diminuída no Congresso, o oficialismo deve engavetar, segundo o professor, as suas propostas mais ambiciosas.

No último sábado, um novo acidente ferroviário na estação Once, situada no bairro da Balvanera, em Buenos Aires, deixou quase cem feridos e rendeu ao governo uma tempestade de indignação. Houve diversos acidentes que envolveram os trens metropolitanos nos últimos tempos – o mais grave deles vitimou 51 pessoas em fevereiro de 2012, na mesma estação em que o trem da linha Sarmiento se chocou nesta semana. Por algumas horas, alguns setores da situação chegaram a levantar a hipótese de que o acidente passaria por uma sabotagem política. No entanto, o depoimento do maquinista, que também se machucou no momento, não apontou para nenhuma evidência neste sentido.

O sucateamento do transporte na Província de Buenos Aires, os altos índices de informalidade no campo de trabalho e a ameaça do crescimento da inflação são alguns dos desafios para o governo neste domingo. Quando retomar da licença médica, Cristina Kirchner poderá encontrar um cenário ainda mais complexo para os próximos dois anos em que estará na presidência da República.