Governo preocupado

Combate à corrupção e fetiche ocidental causam êxodo de novos ricos na China

Após terem acumulado fortuna em mais de 30 anos de boom econômico, chineses exportam riqueza e famílias para fora do país

Wikicommons

Mercado lotado durante celebração do ano novo chinês, em Pequim: enriquecimento acelerado nos últimos 30 anos

Pequim – Em janeiro deste ano, o consulado de Hong Kong no Canadá se viu soterrado por uma montanha formada por 53.580 solicitações para obtenção do status de “investidor federal canadense”, no âmbito do programa de imigração para pessoas ricas mais popular do mundo. O sistema ficou sobrecarregado, e o governo de Ottawa foi obrigado a congelar os vistos.

O acúmulo de papeis foi causado por chineses da República Popular, que representam mais de 70% das solicitações ao programa. De acordo com as regras canadenses, candidatos com patrimônio de pelo menos 1,6 milhão de dólares canadenses [cerca de 3,4 milhões de reais] podem obter o visto de residência com a condição de que “invistam” o valor mínimo de 800 mil dólares [cerca de 1,7 milhão de reais] sob a forma de empréstimo, sem juros, durante cinco anos, em benefício do Canadá.

Este é um fenômeno que Pequim tem tentado desencorajar já há algum tempo: o êxodo dos novos ricos que, após terem acumulado fortunas em mais de trinta anos de boom econômico, exportam riquezas, famílias e eles mesmos para fora da China, seja em busca de uma qualidade de vida “ocidental”, seja por medo da campanha anticorrupção lançada pelas autoridades chinesas. Agora, um estudo da instituição financeira britânica Barclays concluiu que quase metade dos chineses endinheirados pretende se mudar para o exterior nos próximos cinco anos.

O problema não diz respeito somente aos homens de negócio, mas também ao Partido. Nesse caso, tratam-se dos chamados “funcionários nus”, aqueles que permanecem trabalhando no país enquanto transferem família e – sobretudo – contas correntes para além das fronteiras, na esperança de atravessá-las em breve.

Em junho passado, autoridades da província de Guangdong, no sul da China, descobriram que os funcionários que tinham transferido tudo para o exterior somavam mais de mil. Lançou-se então uma campanha de dissuasão: tragam a família de volta ou recebam um rebaixamento na carreira profissional. Uma campanha que, acredita-se, deve se estender a nível nacional.

A pesquisa realizada pela Barclays, baseada em entrevistas com mais de duas mil pessoas chinesas com patrimônio líquido total de 1,5 milhão de dólares, revela que 47% delas pretendem se mudar para o exterior, enquanto a média mundial é de 29%. Os potenciais emigrantes de luxo citam como motivações as melhores oportunidades de estudo e trabalho para os filhos (78%), a segurança econômica e o clima mais agradável (73%), acesso a saúde e serviços sociais melhores (18%). E, confirmando a predileção pela rota Hong Kong-Canadá, descobre-se que o principal destino é a ex-colônia britânica (30%), seguida do país norte-americano (23%).

Mesmo que os verdadeiros motivos sejam a campanha anticorrupção de Xi Jinping (ou seja, os esqueletos no armário) ou os temores sobre o futuro da economia chinesa, a situação reflete certa desconfiança com relação ao próprio país e a quem o governa.

Parece não ter dado muito certo o pacto histórico e silencioso sancionado por Deng Xiaoping com as “reformas e aberturas” do fim dos anos 1970: “enriquecer é glorioso; ganhem dinheiro que no governo pensamos nós, o Partido”. Tal pacto transformou milhões de funcionários políticos em homens de negócios e, passado o choque Tian’anmen, houve uma ratificação institucional com a teoria das três representações de Jiang Zemin, o grande ancião que até hoje puxa algumas cordinhas nos bastidores do governo chinês. Em 2000, o Partido deixou claro que não representava mais soldados, operários e camponeses, mas sim “as forças produtivas mais avançadas do país”, e a partir daquele momento passou às mãos de empreiteiros, magnatas e administradores de empresas.

Assim terminava a igualdade plana de Mao Zedong e se iniciava o capitalismo chinês, que em trinta anos produziu uma desigualdade social que hoje chega ao ponto de ser politicamente desestabilizadora. Por esse motivo, a liderança de Xi Jinping ambiciona hoje um crescimento mais equilibrado e, com as reformas lançadas em novembro de 2013, busca transferir riqueza da parte mais rica do país àquela que ficou para trás. Mas eis que um dos dois lados do acordo, depois de ter feito fortuna, pega o dinheiro e vai embora.

O fenômeno é percebido como uma ameaça para o poder chinês porque é justamente através da classe média urbana resultante de trinta anos de reformas e aberturas que o Partido busca o consenso.

As respostas das pessoas entrevistadas pela Barclays revelam o desejo de uma melhor qualidade de vida. Não por acaso, as motivações dos chamados “incidentes de massa”, protestos que envolvem mais de cem pessoas, são sempre muito mais as questões ambientais do que os conflitos de trabalho e as expropriações de terras, que eram então típicos de uma cidadania ainda operária e camponesa.

Há uma classe média que protesta, e uma que arruma as malas e se manda. Paradoxalmente, para as autoridades, a primeira é a menos perigosa.