Entrada da Venezuela no Mercosul será oficializada em meio a controvérsias

Analistas divergem sobre ampliação do bloco. Congresso do país que recentemente destituiu presidente em impeachment-relâmpago foi o único que não aprovou adesão dos venezuelanos

O chanceler Nicolás Maduro (esq.) e Hugo Chávez acreditam que Venezuela deixará Mercosul poderoso (Foto: Presidência da Venezuela – 20/12/2011)

São Paulo – Uma cerimônia em Brasília deverá oficializar nesta terça-feira (31) a entrada da Venezuela como membro pleno do Mercosul, união aduaneira formada em 1991 por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Da maneira como ocorreu, porém, a ampliação do bloco para incluir o vizinho amazônico está longe de ser uma unanimidade. O momento em que o grupo resolveu absorvê-lo também alimenta divergências. 

A Venezuela manifestou pela primeira vez sua intenção de ingressar no Mercosul em 2001. Onze anos se passaram até que fosse aceita, porque as regras do bloco estabelecem que os novos integrantes devem ser aprovados pelo Legislativo de todos os países-membros, sem exceção – as decisões do Mercosul são tomadas por consenso. Pouco a pouco, deputados e senadores de todos os integrantes concordaram com a entrada da Venezuela. No Brasil a aprovação definitiva veio apenas em 2009. Argentina e Uruguai haviam se manifestado favoravelmente dois anos antes. Faltavam somente os paraguaios.

O argumento do Paraguai para refutar a presença venezuelana no Mercosul era o governo do presidente Hugo Chávez. Dominado pelo conservadorismo dos partidos Liberal e Colorado, o congresso paraguaio defende a tese de que a Venezuela não vive uma democracia plena e que, por isso, o país não poderia aderir ao bloco. De acordo com o Protocolo de Ushuaia, firmado pelos países-membros em 1998, todas as nações que fazem – ou desejam fazer – parte do Mercosul devem viver sob regimes reconhecidamente democráticos. Para a maioria dos parlamentares brasileiros, argentinos e uruguaios, a Venezuela cumpria o requisito. Para os paraguaios, não.

Então, no último dia 22 de junho, veio o impeachment de Fernando Lugo. O presidente do Paraguai foi destituído do cargo após um enfrentamento entre policiais e sem-terra na província de Curuguaty. No episódio, 17 pessoas perderam a vida: 11 camponeses e seis agentes do Estado. O congresso paraguaio aproveitou-se da situação para turbinar as diferenças ideológicas que vinha nutrindo em relação a Lugo e defenestrá-lo do poder. Deputados e senadores acusaram, julgaram e penalizaram o presidente em apenas dois dias, tempo suficiente para que o vice, Federico Franco, se preparasse para assumir suas funções com um amplo sorriso estampado no rosto.

A manobra do congresso paraguaio provocou desconfiança em todos os países da América do Sul, que imediatamente retiraram ou chamaram para consultas seus embaixadores em Assunção. A União de Nações Sul-Americanas (Unasul) enviou uma missão de chanceleres para entender o que estava acontecendo e detectou irregularidades no impeachment. O maior problema, diriam depois, fora a rapidez do processo e o pouco tempo que Fernando Lugo teve para se defender ante o parlamento e a sociedade – não mais que duas horas. Como o direito à ampla defesa é um dos princípios básicos do Estado democrático de direito, os países-membros do Mercosul interpretaram a destituição do presidente paraguaio como um atentado ao Protocolo de Ushuaia, ou seja, uma quebra da ordem democrática.

Seis dias dias após o impeachment de Fernando Lugo, o bloco reuniu-se em Mendoza, na Argentina, para sua 43ª Reunião de Cúpula. Por ter sua legitimidade contestada em todo continente, o novo presidente paraguaio, Federico Franco, não foi convidado para o encontro. Até porque se esperava que os presidentes José Mujica, Cristina Kirchner e Dilma Rousseff optariam por suspender o Paraguai do Mercosul – o que de fato ocorreu – até que o país normalizasse sua situação política. Com os paraguaios oficial e temporariamente fora, esfumaçou-se a última barreira que impedia a adesão venezuelana ao Mercosul. Aproveitando-se da situação, os governos brasileiro, argentino e uruguaio, que já possuíam autorização de seus respectivos congressos para acolher a Venezuela no bloco, decidiram aprovar definitivamente sua entrada.

Avanço

“Foi a coisa mais natural do mundo”, analisa o jornalista Gilberto Maringoni, colaborador do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) e autor de dois livros sobre o novo país-membro do Mercosul: A Revolução Venezuelana (Edunesp) e A Venezuela que se reiventa (Perseu Abramo). “Havia um empecilho colocado pelo congresso paraguaio com a alegação de que o governo Hugo Chávez não era democrático. Quando esses parlamentares, que se alerdeavam guardiães da democracia no continente, aplicam um golpe de Estado contra Fernando Lugo, perdem totalmente a legitimidade.”

Depois de 21 anos de existência, essa é a primeira vez que o Mercosul consegue ampliar-se. Por isso, o jornalista interpreta que a conjuntura política do Paraguai estava travando o desenvolvimento de relações políticas e comerciais dos países do bloco – e de grandes empresas da região – com a Venezuela. “Os paraguaios vinham atrapalhando o crescimento do Mercosul”, pontua. “A suspensão do país possibilita uma melhoria do bloco. É uma pena que o povo do Paraguai fique de fora desse processo, mas agora lhe cabe recolocar seu governo nos trilhos democráticos tirando de cena os golpistas que destituíram Fernando Lugo.”

Para Maringoni, a aversão do congresso paraguaio pela presença da Venezuela no Mercosul se explica por questões prioritariamente econômicas, que se relacionam com as vocações comerciais venezuelanas. Dependente do petróleo, o novo membro do bloco deve configurar-se num grande mercado consumidor de produtos industrializados. “São 31 milhões de habitantes cuja renda média vem subindo nos últimos 14 anos. Houve uma expansão do consumo sem aumento substancial na produção interna. É um mercado a ser disputado”, lembra. “Os setores empresariais do Brasil e da Argentina são os maiores interessados na integração da Venezuela ao Mercosul, ainda mais em épocas de crise.”

Como o Paraguai não possui um parque industrial significativo, continua Maringoni, a adesão dos venezuelanos não causaria maiores impactos em sua economia. “É por isso que o congresso paraguaio fez a opção política de rechaçar a entrada do país no Mercosul, sem qualquer sustentação material”, conclui. “As grandes empresas do continente, que estão livres de preconceitos ideológicos, estão mais interessadas em transformar o bloco num mercado que terá 270 milhões de habitantes com a entrada da Venezuela.”

Institucionalidade

No entanto, o professor de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, Bernardo Sorj, não vê com bons olhos a incorporação do novo membro. Não porque seja contra a ampliação do bloco ou se oponha ao ingresso dos venezuelanos. O problema, ressalva, foi a forma como tudo se deu. “Há tempos os sócios menores – Uruguai e Paraguai – se queixam por serem atropelados pelas decisões de Brasil e Argentina”, resgata. “A adesão da Venezuela nas condições em que se deu não ajudará a consolidar o Mercosul. Pelo contrário, criará uma crise institucional que só atrapalha.”

Dias após a decisão tomada pelos chefes de Estado, o chanceler uruguaio, Luis Almagro, veio a público dizer que o Brasil havia forçado a situação, da qual ele discordava pelo fato de o Paraguai estar apenas suspenso, e não excluído definitivamente do bloco. A polêmica durou alguns dias, até Pepe Mujica vir a público dizer que a decisão havia sido tomada de comum acordo entre os três presidentes. 

Bernardo Sorj afirma que Cristina Kirchner, Dilma Rousseff e José Mujica passaram por cima das normas e acordos do bloco regional ao dar passo à entrada da Venezuela durante a asuência do Paraguai. “A suspensão do país não anula o direito do povo paraguaio, representado pelo congresso, decidir se aceita ou não o ingresso de um novo membro”, defende. “Ademais, o Paraguai foi suspenso de forma apressada. O Protocolo de Ushuaia diz que, em caso de ruptura da ordem democrática, os países-membros devem consultar a nação afetada. E isso não aconteceu: poucos dias depois do impeachment os paraguaios já estavam fora do bloco.”

O professor da UFRJ argumenta que o respeito aos tratados internacionais – que tradicionalmente balisaram a política externa brasileira – deve preponderar sobre as relações pessoais ou empatias políticas entre chefes de Estado. “Estamos diante de um rompimento da ordem institucional do Mercosul”, avalia. “As regras estão aí para serem respeitadas. Se não funcionam adequadamente, então devemos mudá-las. Enquanto estão em vigência, não podem ser desobedecidas por decisões casuísticas e aleatórias dos presidentes.”

A questão central, continua, é o respeito à institucionalidade internacional. Bernardo Sorj avalia que a importância cada vez maior do Brasil na América Latina e em todo o mundo deve vir acompanhada de um profundo respeito aos tratados firmados pelo país. “É importante que os brasileiros assumam seu papel de liderança com regras claras e observância das normas internacionais”, critica. “É fundamental pensar em interesses de longo prazo. A grande política passa pela construção de instituições democráticas e tratados sólidos, onde todos os países se sintam respeitados.”