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‘Clube-empresa’ não ataca problemas de gestão, mas amplia sonegação

Para especialistas, texto que tramita no Congresso é apenas um novo refinanciamento de dívidas que abre espaço para aventureiros no esporte

Vítor Silva/SSPress/Botafogo
Vítor Silva/SSPress/Botafogo
Um dos poucos interessados no projeto, o Botafogo tem uma dívida, atualmente, acima de R$ 750 milhões e dificuldades em gerar caixa, já que a receita líquida, em 2018, foi de R$ 182 milhões

São Paulo – Um projeto de lei que incentiva os clubes de futebol a se transformarem em empresa foi aprovado na Câmara no último dia 28, e seguiu para o Senado, onde deve ser votado em 2020. Com baixa adesão dos times, o PL 5.082/2016, do deputado federal Pedro Paulo (DEM-RJ), é considerado por analistas ouvidos pela Rede Brasil Atual apenas um novo meio para refinanciar as dívidas dos clubes com o governo e não tem como objetivo mudar a gestão temerária das equipes, deixando que tudo continue como está.

Até o momento, apenas o Botafogo e o Athletico-PR se interessaram pela proposta. Clubes como Flamengo, Palmeiras, São Paulo e Corinthians já demonstraram o contrário. O desinteresse de boa parte das agremiações não se dá só pelo medo de os dirigentes perderem força política, mas pelo fato de o projeto ser uma “válvula de escape” para clubes desesperados financeiramente, como o Botafogo. É o que afirma o especialista em finanças esportivas Amir Somoggi.

“O que está sendo feito é uma cortina de fumaça para enganar a opinião pública e a população vai pagar a conta dessa sonegação fiscal dos clubes. Boa parte dos times não virarão empresas, mas vão usufruir dos benefícios que o governo está oferecendo em mais um refinanciamento, que só encobre a má administração dos times. Um estudo mostrou que os clubes tiveram R$ 700 milhões em descontos fiscais com outros programas de refinanciamento, ou seja, eles sonegam e ainda ganham benefícios”, critica Somoggi.

O projeto do Pedro Paulo tem problema e “inconsistências”, na avaliação de Fernando Monfardini, advogado especialista em compliance esportivo. Para ele, o objetivo indireto do projeto de lei é exonerar as associações para as transformarem em empresas, sem atacar o verdadeiro problema do futebol: a gestão dos clubes.

“O ponto principal deveria ser discutir a governança dos clubes. Por que não se debate uma governança, com uma agência que possa fiscalizar esse ponto? Chegarão novos problemas e novas soluções, mas o espírito do futebol ainda não muda. Não adianta só mudar o CNPJ, o que garante mudanças é trocar a forma de gestão”, acrescenta Monfardini.

Refinanciamento da dívida

O texto do projeto de Pedro Paulo oferece aos clubes a possibilidade de um refinanciamento de dívidas em até cinco anos, com redução de 70% das multas, 40% dos juros e 100% dos encargos legais. A parcela mínima é de R$ 3 mil por mês e há a possibilidade de pagar em parcela única, com desconto de 95% dos juros e 65% das multas, além da isenção de encargos legais.

Este é o segundo refinanciamento oferecido aos times, em menos de cinco anos. Em 2015, eles puderam aderir ao Profut, que oferecia refinanciamento de 20 anos, descontos de 70% das multas e de 40% dos juros, além de isenção dos encargos legais. Entretanto, um relatório da EY aponta que o endividamento dos clubes chegou a R$ 7,3 bilhões em 2018.

O jornalista Juca Kfouri afirma que o Estado só tem estimulado os clubes mal pagadores a continuar aumentando a dívida. “Só se oferece mamão com açúcar para endividados, sem cobrar contrapartidas. Essa lei do jeito que está abre espaço para mais calote, é o objetivo da lei. Além de achar uma maneira para o Botafogo, time do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a sobreviver mais um ou dois anos”, aponta.

Somoggi, que se diz favorável à transformação dos clubes em empresas, classifica a lei como “frágil”, já que mantém o futebol brasileiro nas mãos dos dirigentes amadores. “O time sonega e ganha de presente mais possibilidades de não pagarem lá na frente, como aconteceu com o Profut. Daqui a três anos, vamos ter outra lei para refinanciar as dívidas novamente, porque elas nunca caem. Eles sabem que é importante pagar os bancos ou empresários de jogadores, mas o governo não precisa? Não tem nenhum local na lei que fala sobre boas práticas de administração.”

Recuperação judicial

O projeto aplica mais “vantagens” para equipes de futebol que realizarem a migração. Uma delas é a possibilidade de propor um plano de recuperação judicial, com base na lei de falências, em vigor desde 2005. Entretanto, a regra para os clubes é diferente, enquanto uma empresa comum precisa ter dois anos de atividade para propor o plano aos credores, o clube-empresa pode pedir a recuperação logo após a migração.

Ao pedir a recuperação judicial, os clubes terão todos os bloqueios e penhoras suspensos por seis meses e precisam apresentar um Plano Global de Recuperação Judicial a ser submetido a credores, como ex-funcionários e fornecedores, permitindo que o calote na dívida aumente, caso os credores aceitem o plano.

Ainda de acordo com a lei de 2005, caso o plano de recuperação judicial não seja respeitado, é declarada a falência da empresa. Entretanto, os especialistas são categóricos ao afirmar que é improvável que o mesmo procedimento seja aplicado aos clubes. “Nunca irão declarar a falência dos clubes. Os clubes fazem o que bem entendem e a CBF não faz nada. É uma terra de ninguém”, alerta Amir Somoggi.

O Botafogo, por exemplo, tem dívida atualmente acima de R$ 750 milhões e dificuldades em fazer caixa, já que a receita líquida, em 2018, foi de R$ 182 milhões. Fernando lembra que é nebulosa a aplicação da recuperação judicial em clubes de futebol, já que o resultado dentro de campo interfere nas receitas e pode prejudicar no cumprimento do plano. “Times tem diferenças com outras empresas. Se o Botafogo caísse neste ano, eu duvido que transformariam ele em empresa, com a cota de televisão reduzida e a menor receita do Rio de Janeiro. Ninguém assumiria essa dívida”, exemplificou.

“O projeto de lei coloca um prazo curtíssimo para que os clubes entrem nesse refinanciamento, quase obrigando a se transformarem rápido em empresa. Isso é muito perigoso. Isso possibilita que errem no plano de recuperação e no modelo de empresa. Os atuais dirigentes, que são tão criticados, serão os responsáveis por criar os termos da venda do clube e ainda criarão o plano de recuperação”, acrescenta Monfardini.

DIVULGAÇÃO

Especialista cita o Milan como exemplo, que foi comprado em 2017, por um grupo de investidores chinês e não quitou a dívida do clube. Para ele, a maioria das agremiações não têm estrutura de governança para analisar os riscos de um investidor

Investidores ou aventureiros?

Para Juca Kfouri, os clubes sabem que, com o atual projeto de lei, será difícil arrumar investidor, já que os times acumulam dívidas e dão poucas garantias de retorno financeiro. Por outro lado, os dois especialistas em gestão esportiva alertam para a entrada de aventureiros no esporte.  “Não consigo ter certeza que virá gente séria para o futebol”, lamenta Amir Somoggi.

Já Monfardini cita o Milan como exemplo, que foi comprado em 2017, por um grupo de investidores chinês e não quitou a dívida do clube. Um ano depois, o clube italiano foi novamente vendido, agora, para um fundo norte-americano. O advogado lembra que a maioria das agremiações não têm estrutura de governança para analisar os riscos de um investidor.

Outro ponto crítico levantado por Monfardini é o uso da crise financeira dos clubes, por parte dos investidores, para a lavagem de dinheiro. “Qualquer coisa que envolve perda financeira, alta movimentação financeira sem lastro, sem regular um valor de mercado para jogadores, ainda com dinheiro transnacional, isso é um paraíso para lavar dinheiro. Já teve casos na Bélgica e Colômbia. Há esse risco, sim”, alertou.

Tributação e direitos trabalhistas

O PL 5.082 também oferece outras mudanças para o clube-empresa. Entre elas, um regime de tributação diferenciado, o Simples-Fut, que recolheria 5% sobre a a receita bruta do clube para quitar três tributos de uma só vez: o Imposto de Renda (IRPJ), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e o Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins). Atualmente, as empresas são obrigadas a recolher 25% sobre o lucro referente ao Imposto de Renda e 9% sobre a Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), incluindo 3% sobre receitas para Cofins.

O projeto de Pedro Paulo também altera os direitos trabalhistas dos atletas com salários a partir de R$ 11,5 mil, previstos na Lei Pelé. Agora, 20% do salário ficará sujeito às normas da CLT, e os outros 80% referentes ao contrato de direito de imagem. As duas alterações são criticadas pelos especialistas.

Amir Somoggi chama de “vergonha” a medida. “Imagina uma empresa como o Flamengo, arrecadando R$ 700 milhões, pagando só 5% de imposto”, criticou. Já o advogado chama atenção para a divisão do salário, que legalizaria uma prática ilegal dos clubes, que não exploram a imagem dos jogadores. “Eles colocam dentro do direito de imagem uma parte do salário para reduzir o encargo trabalhista. Na prática, isso tem implicações legais graves. Essa mudança no projeto de lei vai criar problema no recolhimento desses encargos”, explica Fernando.

Outra unanimidade para eles é que os clubes pequenos serão os mais prejudicados nesse novo processo do futebol brasileiro. “Ninguém está preocupado com eles. Essa lei é um lobby dos grandes”, lamenta Somoggi. “Essa lei não se importa com os clubes pequenos. O caminho que seguimos, hoje, é para acabar com os pequenos clubes. A quantidade de clubes tem diminuído anualmente”, acrescenta Monfardini.