Um chamado

‘Papo reto’ e afiado de Bia Ferreira sacode a estrutura do feminismo

Em seu primeiro álbum, cantora e compositora fala de feminismo negro, racismo, homofobia e amor, numa linguagem que conclama homens e mulheres brancas a participarem da mudança

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Bia Ferreira canta o feminismo negro em sua música: "A gente precisa segurar a mão e lutar junto. Quanto mais gente lutando junto, menos gente lutando contra"
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Bia Ferreira canta o feminismo negro em sua música: “A gente precisa segurar a mão e lutar junto. Quanto mais gente lutando junto, menos gente lutando contra”

São Paulo – Um chamado. O título do primeiro álbum da cantora e compositora Bia Ferreira resume bem o modo como ela interpreta a própria arte: usar a música para dar voz a temas caros à mulher negra e, assim, levar educação e colaborar para transformar a sociedade.

Nascida em Minas Gerais e criada em Aracaju, suas ideias firmes embaladas por uma voz possante e ritmo swingado, chamaram a atenção de público e crítica primeiro com a música Cota não é esmola, na qual o recado é claro e sem rodeios sobre um tema que ainda causa polêmica no debate político brasileiro.

“Existe muita coisa que não te disseram na escola

Cota não é esmola!

Experimenta nascer preto na favela pra você ver!

O que rola com preto e pobre não aparece na TV

Opressão, humilhação, preconceito

A gente sabe como termina, quando começa desse jeito

(…)

Experimenta nascer preto e pobre na comunidade

Você vai ver como são diferentes as oportunidades

E nem venha me dizer que isso é vitimismo

Não bota a culpa em mim pra encobrir o seu racismo!

Existe muita coisa que não te disseram na escola!

Cota não é esmola!

Didática, Bia Ferreira usa a metáfora de uma corrida para explicar o privilégio da mulher branca diante da mulher negra.

“Enquanto eu estou na linha de partida, você (a mulher branca) já está no meio da corrida para começar a correr. Não tem como eu ir correndo até você. Então a gente precisa abrir mão desse privilégio de começar no meio da corrida, voltar um pouquinho, andar para trás, chegar no ponto de partida e se colocar lado a lado com uma pessoa que está atrás de você e falar: ‘A gente está junto. Vamos começar do mesmo lugar?'”, explica a cantora, em entrevista a Fabiana Ferraz, apresentadora do Manhã Brasil Atual, da Rádio Brasil Atual.

“É por isso que a gente faz música assim, para que as pessoas entendam que a gente precisa segurar a mão e lutar junto, porque quanto mais gente lutando junto, menos gente lutando contra”, resume Bia Ferreira.

Do apê para a rua

E para angariar novas mãos e mentes na luta contra o racismo, a homofobia e a misoginia, a cantora e compositora lançou recentemente o primeiro videoclipe da carreira, De Dentro do AP, faixa que integra seu álbum Um Chamado e que será lançado dia 31 de maio.

A apresentadora Fabiana Ferraz define a canção como “um manifesto do feminismo negro”. Para ela, a letra composta por Bia, “forte e impactante, coloca o dedo na ferida do feminismo branco”.

Acompanhe:

“De dentro do apê

Com ar condicionado, macbook, você vai dizer

Que é de esquerda, feminista defende as muié

Posta lá que é vadia que pode chamar de puta

Sua fala não condiz com a sua conduta

Vai pro rolê com o carro que ganhou do pai

Pra você vê, não sabe o que é trabai

E quer ir lá dizer

Que entende sobre a luta de classe

Eu só sugiro que cê se abaixe

Porque meu tiro certo vai chegar direto

Na sua hipocrisia”

“A intenção dessa música é provocar empatia. É mostrar para as pessoas que o termo ‘sororidade’ – um termo acadêmico – já vem sendo praticado por mulheres pretas desde os primórdios, quando as mulheres pretas deixam os filhos com a vizinha para lavar a roupa; quando deixa o filho com a irmã mais velha para ir limpar a casa dos outros. É comum, as mulheres pretas têm o hábito de agir assim”, explica Bia Ferreira.

Nesse sentido, ela diz que o clipe foi também produzido com a intenção de fazer uma provocação, como se dissesse: “Olha, estamos estudando isso aqui, mas isso aqui já existe, e não existe feminismo se você não defender a vida das mulheres negras e não defender a vida das mulheres trans, que são as que mais morrem no Brasil”, analisa a multi-instrumentista.

“Se você quer lutar comigo, luta comigo e sangra comigo, porque a gente está sangrando e morrendo todos os dias. A gente precisa que as pessoas sejam empáticas com essa dor, para que ninguém mais sinta essa dor.”

Bia reforça a necessidade de acabar com o patriarcado, um sistema que faz as mulheres sofrerem e ganharem menos, apenas por serem mulheres, independentemente da cor — embora a mulher negra ganhe menos ainda.

Por isso, ela pondera que, para uma mulher branca, lutar pela vida da mulher negra e travesti, é melhorar o seu próprio bem-estar. “Quando estiver bom para uma travesti, para você (mulher branca) vai estar ótimo, porque você está num outro lugar de privilégio.”

Feminismo

Feminista, Bia Ferreira reconhece ter tido, durante muito tempo, dificuldade em se ver “encaixada” na luta feminista. A explicação é mais simples do que surpreendente: “Eu não vi pessoas preocupadas com a forma como eu estava me mantendo viva, não vi pessoas falando a respeito das coisas que me contemplavam”, diz.

Como exemplo, fala que não se identificava com protestos em que mulheres brancas mostravam os seios, embora diga que compreende o gesto como uma forma de libertação para a mulher branca, tradicionalmente criada para ser “recatada e do lar”. Porém, como mulher negra, cujo corpo é costumeiramente retratado de modo sexualizado – a “globeleza” de pouca roupa –, tal gesto jamais a atraiu.

“Nesse lugar, eu não me sinto à vontade de mostrar meu peito, porque o meu corpo já é hiper sexualizado há muitos anos. Meu corpo foi colocado para ser o corpo da prostituição, o corpo escravizado, que já não cuida dos filhos, desde sempre, porque tem que cuidar dos filhos das mulheres brancas desde a época da escravidão”, explica Bia Ferreira.

E vai além: “Quando a gente olha por esse recorte, a gente entende que as mulheres negras não foram pensadas para essa ideia de feminismo. Eu tive muita dificuldade em me entender feminista, mas quando a gente fala que ser feminista é lutar por direitos iguais e pela vida das mulheres, aí eu falo: ‘Puxa, eu sou feminista, mas esse feminismo não me aborda, não fala sobre mim'”.

A base teórica para desenvolver suas ideias de feminismo e ajudar a formatar a construção da sua identidade de mulher negra, a cantora e compositora foi buscar na obra de autoras como Audrey Lodge, Djamila Ribeiro, Rosa Parks e Angela Davis.

E nesse processo, Bia enfatiza a influência dos governos que o Brasil teve entre 2002 e 2015. “Um governo que trouxe oito vezes a Angela Davis ao Brasil, e pautou a construção da identidade preta nas mulheres brasileiras, que não tinham acesso à teoria do feminismo preto.”

Ela ainda destaca a ampliação do acesso à universidade ocorrido naquele período, o que permitiu que muitas jovens pobres e negras ampliassem a consciência por meio dos estudos. “Quando o povo preto e periférico começa a ter esse acesso, a gente começa a se entender, ter argumentos e base teórica para justificar o que estávamos falando, e aí eu me sinto identificada com o feminismo interseccional.”

Amor e música

Bia Ferreira define o primeiro álbum como um disco dançante, com as raízes da música negra por meio do ritmo, do reggae, do jazz, blues, soul, funk e R&B. Seu disco de estreia fala de racismo e feminismo, mas também de amor. É o caso da canção Só você me faz sentir, em que ela canta como mulher lésbica, e também da música Levante a bandeira do amor.

“Quem você é, não passa por quem dorme com você, independe de com quem você se relaciona afetivamente. É muito mais uma coerência do que você faz, fala, da sua forma de viver, pelo seu caráter, competência de trabalho. Mas num mundo e num país onde as mulheres lésbicas sofrem ‘estupro corretivo’, a gente precisa se pautar sim como mulher lésbica. Então esse disco traz várias questões, e também o amor.”

A artista costuma falar que o povo negro lidera uma revolução que já está em curso, um movimento que apenas precisa de mais gente para ser mais forte. “A gente não vai se calar diante desse governo fascista, racista, misógino e transfóbico. A gente toma lado sim, e é o lado certo da história.”

Ouça a entrevista na íntegra