Von Trier exorciza demônios pessoais com ‘Anticristo’

O diretor convida as pessoas para 'uma olhada por trás da cortina, uma olhada no mundo obscuro da minha imaginação'

Os atores Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe em cena do filme (Foto: Divulgação)

São Paulo – “É um doloroso, um arrepiante espetáculo que despontou para mim: abri a cortina da corrupção do homem.” Com essa frase, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche começa o seu ensaio de 1888 chamado “O Anticristo”. Mas essas palavras poderiam muito bem ser ditas pelo cineasta dinamarquês Lars von Trier, em cujo mais recente filme, não por acaso intitulado “Anticristo”, descortina, mais uma vez, a sordidez humana.

O longa estreia em São Paulo e Rio, nessa sexta-feira (28).

Aos 53 anos, o enfant terrible mais velho do cinema contemporâneo continua causando polêmica, repulsa e paixão em iguais medidas a cada novo trabalho acrescentado à sua carreira.

Desde os anos 1990, quando sua carreira decolou, Von Trier se tornou o autor residente do Festival de Cannes, no qual ganhou diversos prêmios como o Grand Prix (“Ondas do Destino”, 1996) e o maior de todos, a Palma de Ouro, com “Dançando no Escuro” (2000).

“Anticristo” rendeu a láurea de interpretação feminina para sua protagonista Charlotte Gainsbourg, mas o barulho que o longa causou no festival, em maio passado, não será esquecido tão cedo, chegando quase a ofuscar o grande premiado, “A Fita Branca”, do austríaco Michael Haneke.

Com duas mutilações, morte de uma criança, sexo explícito, o aborto de um animal e uma raposa falante, “Anticristo” apresenta um cardápio variado para todos os paladares.

Os elementos supostamente estranhos do filme podem, no entanto, parecer mero sensacionalismo e desviar o foco de algo mais interessante: até onde alguém pode chegar para lidar com a dor? A resposta: veja “Anticristo”.

Von Trier criou o longa quando passava por uma depressão profunda e o filme realmente é o trabalho de alguém emocionalmente perturbado. Algumas pessoas livram suas neuras em sessões de análise. Outras, fazendo arte. Ainda bem que Von Trier pertence ao segundo caso.

Esse drama psicossexual conta apenas com dois personagens, Ele (Willen Dafoe, que já foi o próprio Jesus no filme de Scorsese, “A Última Tentação de Cristo”) e Ela (Charlotte). Num belo prólogo, rodado em uma câmera ultralenta num preto-e-branco límpido, eles transam enquanto o filho pequeno passeia pela casa e mergulha para a morte ao cair de uma janela – não sem antes derrubar pequenas estátuas de três mendigos, chamados de Dor, Luto e Desespero.

Só um cineasta do porte de Von Trier (combinando doses de polêmica e genialidade) seria capaz de criar imagens tão belas quanto assustadoras como essas que abrem o filme. Mas isso é só o começo. Ao longo de mais de cem minutos, o longa será construído em cima de opostos, ele/ela, natureza/homem, escuridão/luz e, especialmente, imagens de uma beleza hipnótica contrastando com horrores de revirar o estômago.

A personagem feminina, Ela, é incapaz de lidar com a perda do filho e cai deprimida; o marido, que é psicanalista, pretende tratá-la. Isolados numa cabana numa floresta, chamada Éden (ironia, claro, pois o lugar está mais próximo do inferno), espera que ela supere a dor e o medo.

Ele explica que o momento requer “a coragem de estar na situação que te apavora para ver que o medo não é perigoso”. Ela é uma intelectual estudando as maldades cometidas contras as mulheres ao longo dos séculos, especialmente o feminicídio – se alguém tem alguma dúvida do que é isso, Von Trier o mostrará em close num momento climático.

Embrenhado no Éden infernal, o casal é abduzido por seus demônios pessoais, especialmente quando a Natureza – para Ela, “a igreja do diabo” – se volta contra eles. Promovendo atividades para a ajudá-la a superar seu trauma, o marido não será poupado – embora ela culpe mais a si mesma pela morte negligente da criança. O sexo e o prazer sexual, para ela, então, estão claramente associados à morte, daí a justificava para as mutilações.

Em suas obras mais importante, como “Ondas do Destino” (1996) e “Dançando no Escuro” (2000), Von Trier nos mostra que a bondade pode ser punida. Os personagens intrinsecamente bons pagam por sua generosidade. Em “Dogville” (2002) e, mais tarde, na sua sequência, “Manderlay” (2005), o diretor muda esse discurso. Os bons podem se tornar perigosos quando seus atos não são reconhecidos. Aqui, há uma subversão de tudo isso: o mal também é passível de punição.

A Natureza é uma força devastadora, assim como uma mãe que sofre com a morte de seu filho. Como diz o trecho da ópera “Rigoleto”, de Handel, na abertura e encerramento do filme, a personagem feminina pede “deixe-me chorar pelo meu destino cruel (…), que a dor possa romper os laços da minha angústia”. É a personagem se punindo com um sofrimento ainda maior do que aquele que ela não consegue superar. Ninguém deve subestimar uma mãe em luto – nem um cineasta depressivo.

No material distribuído para imprensa em Cannes, o diretor convida as pessoas para “uma olhada por trás da cortina, uma olhada no mundo obscuro da minha imaginação”. O que parece ser a mesma cortina da corrupção do homem que Nietzsche abriu e se horrorizou. “Antricristo” não é um filme de horror, mas, sim, de horrores, sem medo de afundar no lado mais obscuro do ser humano – como raramente se vê no cinema. Nesse sentido, faz parecer que o próprio Von Trier possa ser o anticristo do título.

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Fonte: Reuters