O filósofo e o comissário

Um conto de Bernardo Kucinski inspirado em Renato Pompeu

'O guarda de fronteira da Albânia Mikhail Gluko matou ontem por estrangulamento a velhinha Irina Maria Drenava, de 82 anos'. Como o filósofo previu, a nota passou incólume pelos controles

Paulo Pepe/RBA

Texto está em coletânea reunida no livro ‘Você Vai Voltar pra Mim’, a ser lançado. B.Kucinski revela inspiração

Trancado na saleta da rádio-escuta, como todas as noites, exceto nas de sábado, o secretário de redação Simas, de fones aos ouvidos, sintoniza as ondas curtas da rádio Tirana. Anota à mão o melhor que pode as orientações do serviço brasileiro da rádio, transmitidas sempre na mesma ordem, primeiro a análise do cenário mundial, depois notícias da Albânia, também referida como “país farol do socialismo”, finamente a avaliação da política brasileira com diretivas da conduta que melhor serve aos interesses da classe operária.

Depois Simas datilografará as diretivas e as deixará com o diretor do jornal, Raildo Nogueira, que as lerá duas ou três vezes para bem memorizar as análises e palavras de ordem, antes de convocar a reunião de pauta das dez da manhã. O próprio Raildo rasgará depois o relatório em pedacinhos diminutos e os fará desaparecer na descarga da privada.

Raildo é uma puta velha do jornalismo, como se diz no jargão da profissão, maneiro e calculista; deixa que outros, não ele, proponham as matérias e seus enfoques na reunião de pauta. Quase todos são do partido de modo que já conhecem a linha geral. Se alguém sugere uma pauta contrária às orientações em vigor, Raildo desvia a ideia jeitosamente, sugere que se adote um enfoque mais criativo, ou que se discuta a proposta de novo na semana seguinte, ou alega que o assunto, embora interessante, não tem a urgência daquele outro. Nunca diz não diretamente. Raildo cultiva a imagem do jornalista independente, intransigente no combate à ditadura.

Foi assim na reunião dessa quarta-feira, quando tudo começou. O editor de Internacional, um dos poucos não pertencentes ao partido, comentou um massacre perpetrado em Angola pelas forças de Jonas Sawimbi e sugeriu que se entrevistasse um especialista do Departamento de História da USP sobre as acusações de que Sawimbi vinha sendo usado e armado pela CIA, com o intuito de solapar o Movimento Popular de Libertação de Angola, de Agostinho Neto, sabidamente apoiado pelos russos.

O massacre fora um dos tópicos das diretivas da rádio Tirana daquela madrugada, Raildo havia memorizado: a posição correta é de apoio a Sawimbi que luta contra a influência do social-imperialismo na África. As acusações de massacre não passavam de propaganda dos inimigos do socialismo e das lutas de libertação nacional dos angolanos. Social-imperialismo é o designativo da China para a influência da União Soviética na África. Dois subeditores, previamente alertados, expressaram dúvidas sobre a veracidade da acusação contra Sawimbi e a pauta foi derrubada, para desgosto do editor de Internacional que fizera a proposta.

Além dele, quem não gostou do desfecho da reunião foi o “filósofo” do jornal, Abel Pompilho, assim chamado devido ao seu hábito de ruminar palavras sem falar, e por sempre carregar uma pasta gorda repleta de livros. Ele próprio é um tanto gordo, movendo-se devagar, os olhinhos miúdos fitando ironicamente as pessoas que topa pelo caminho. Abel Pompillo lê o Le Monde, o The Guardian, sabe que o massacre aconteceu e foi um dos piores da guerra civil angolana. Mas o filósofo nada disse.

Na quinta, o “filósofo” já tinha seu plano. Executaria no dia seguinte, sexta, quando os editores principais relaxam os controles na pressa de fechar, para começar logo a reunião semanal do núcleo do partido, que fazem às portas fechadas no ultimo andar. O filósofo é responsável pela seção de notas, que ocupa uma coluna inteira do jornal, de alto a baixo na página 2. Naquele dia enfiou, entre as demais, a seguinte nota: “O guarda de fronteira da Albânia Mikhail Gluko matou ontem por estrangulamento a velhinha Irina Maria Drenava, de 82 anos, quando a anciã, que sofre de deficiência auditiva se recusou a mostrar seu visto de saída, insistentemente pedido pelo guarda.”

Como o filósofo previu, a nota passou incólume pelos controles e foi para a oficina. No sábado de manhã, disposta no meio de tantas outras notas no jornal impresso, não chamou a atenção. Mas, à tarde, o nervosismo já tomava conta da redação. O editor Raildo convocou os subeditores à sua sala e exigiu explicações, que nenhum deles conseguiu dar; o cochilo passara por todos. O que realmente preocupava Raildo era se aquilo fazia parte de algum complô interno contra ele por algum grupo dissidente do partido. Isso ele checaria depois por outros canais.

No começo da noite, atravessa discretamente a redação, rumo ao último andar, o presidente do partido em pessoa, o velho João Tocantins, veterano das brigadas internacionais, membro da resistência francesa e constituinte de 1945. Figura histórica do movimento comunista, Tocantins voltara clandestinamente do seu exílio na Albânia apenas um ano antes. Sua presença no jornal, com riscos para a sua própria segurança, expressava a importância que o partido dera à infame nota sobre o estrangulamento da velhinha por guardas albaneses.

O fechamento é acelerado para que os quadros principais do jornal possam se reunir com Tocantins no último andar. A nota do estrangulamento desencadeara uma grave crise nas relações com o partido irmão da Albânia, ameaçando a sobrevivência do jornal e o projeto político de hegemonizar as esquerdas brasileiras, ligado ao seu lançamento menos de seis meses antes.

Na reunião, João Tocantins não tem papas na língua. Acusa o redator da nota de ser um agente provocador certamente a serviço da Quarta Internacional ou do social-imperialismo. O chefe da oficina, que veio à reunião de macacão, balbuciou muito nervoso e emocionado: “Se for verdade o estrangulamento da velhinha eu saio do partido.” Dois membros da direção do jornal corroboraram que o filósofo tinha fama de trotskista. Ficou claro que ele inventara a nota; tinham acabado de confirmar com o secretário Simas que excepcionalmente num sábado fora à rádio-escuta, onde ainda se encontrava.

Raido explicou então a Tocantins que o sujeito só fora contratado porque era bom demais na escrita e aceitara os salários “de militância” do jornal. Além disso, era preciso dar uma aparência pluralista ao jornal, que vendeu cotas a inúmeros jornalistas do país todo, apresentando-se como o primeiro diário independente e dirigido pelos próprios jornalistas. Tanto assim que dois outros contratados, o editor de Internacional e o chefe de distribuição, também não eram membros do partido.

O editor de Esportes, previamente instruído por Raildo, propôs a imediata demissão do Filósofo. Mas o subeditor argumentou que seria danoso ao jornal demitir um profissional muito popular na categoria e famoso por seu sarcasmo e capacidade infinita de ironizar. Alguém lembrou também a possibilidade de sua demissão gerar outras em protesto, o que transformaria um incidente individual numa crise mais geral, com graves repercussões para um jornal ainda não consolidado.

Ainda discutiam o que fazer quando Simas irrompe na sala, nervoso, agitando um papel, e gritando frases entrecortadas. “Assaltaram o edifico da Rádio e Televisão de Tirana… multidões… exigem o fim do regime de partido único… nas fronteiras com Montenegro e o Kosovo, muitas pessoas inclusive anciãos foram pisoteados e mortos na tentativa de atravessar os controles…” Subiram todos para a sala da rádio-escuta. Nunca mais falaram do caso do filósofo. O jornal ainda durou um mês mais.

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Você vai voltar pra mim
O texto acima está entre os 150 contos de ficção, baseados em fatos reais, escritos por Bernardo Kucinski entre 2010 e 2013 e reunidos na coletânea Você Vai Voltar pra Mim (Cosac Naify). O lançamento será no próximo dia 24 de fevereiro, na Livraria da Vila (Rua Fradique Coutinho, 915, Pinheiros). De acordo com o autor, o “filósofo” deste conto é inspirado no jornalista Renato Pompeu, morto no domingo aos 72 anos. Pompeu trabalhou nos principais jornais do país entre 1960 e 1999 e também em jornais da chamada imprensa alternativa, como Movimento (que circulou entre 1975-1981).
“O fato básico aconteceu, embora a narrativa em si, os detalhes, as circunstâncias, os nomes etc. sejam pura invenção”, diz Kucinski. Todos os conto do escritor, aliás, se inspiram “no clima de opressão reinante no nosso país nas décadas de 1960 e 1970 e suas sequelas”, como ele explica na apresentação do livro.
O mesmo vale para seu livro anterior, K., que ganhará terceira edição, também pela Cosac Naify. Alguns textos preliminares de Kucinski, antes de serem reunidos em livro, foram publicados na Revista do Brasil, como “A mãe rezadeira”, “Um homem muito alto” (ambos inspirados no jornalista Ottoni Fernandes Jr, que morreu em dezembro de 2012), “O garoto de Liverpool” e “A instalação”.
No prefácio, a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl, integrante da Comissão Nacional da Verdade, afirma que, “passado um tempo subjetivo em que silêncio e estupor são as únicas reações possíveis ante o evento traumático, as vítimas e testemunhas se põem a falar. Ou a escrever. Não é um capricho: é uma necessidade”. Sobre o “O filósofo e o comissário”, Maria Rita diz “temer que a ironia de Kucinski dificilmente seja perdoada” por integrantes de organizações que o inspiraram.