Literatura

Exposição em São Paulo apresenta trabalhos inéditos de Carolina Maria de Jesus

Instituto Moreira Salles apresenta a mostra “Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os Brasileiros” até 30 de janeiro de 2022, com entrada franca

Cecília Bastos / Jornal da USP
Cecília Bastos / Jornal da USP
Exposição "Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os Brasileiros", no Instituto Moreira Salles, em São Paulo

Jornal da USP – Mesmo com apenas dois anos de estudo, Carolina Maria de Jesus vendeu 10 mil cópias de seu livro Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada (1960) em uma semana. Ela era citada em jornais e em revistas como uma escritora preta e favelada que conseguiu vender seu best-seller em 40 países. Mas há dez anos pesquisas vêm demonstrando a complexidade de Carolina, que até então era do conhecimento de poucas pessoas. A partir de seus manuscritos e materiais inéditos, é possível compreender as “outras Carolinas” na exposição Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os Brasileiros, em cartaz no Instituto Moreira Salles (IMS), em São Paulo. Até o dia 30 de janeiro de 2022, o público tem a oportunidade de contemplar não só a Carolina que escreve diários, mas também a que redigiu romances, peças de teatro, crônicas, canções, poesias, contos e até aquela que foi artista têxtil. A exposição mostra também como Carolina, multiartista na forma e no conteúdo, inspira outros artistas e contribui nas lutas sociais.

“A exposição é importante para mostrar o trabalho e a importância de Carolina Maria de Jesus”, ressalta Dani Anjos, orientador da mostra. Ele faz uma comparação entre Carolina e Clarice Lispector, já que a trajetória desta também está sendo exposta no instituto e as duas escritoras são da mesma geração da literatura brasileira. “Carolina não teve a mesma evidência que Clarice devido à sua classe social e à sua cor. Quem já leu as vivências de Carolina em seu diário como uma mulher negra e periférica percebe que ela era muito guerreira e passou por vários empecilhos durante sua vida na favela do Canindé, em São Paulo”, destaca o orientador. “Vemos na exposição como ela dá voz para a nossa geração.”

Dani Anjos com Carolina – Foto: Cecília Bastos

A exposição apresenta vários aspectos curiosos de Carolina, a começar pelo título, Um Brasil para os Brasileiros, que remete a dois cadernos originais de Carolina, desde 2006 sob a guarda do IMS. Esse título, inspirado em  citação do jurista Ruy Barbosa, refere-se aos manuscritos que Carolina entregou para as jornalistas Clélia Pisa e Maryvonne Lapouge em 1975 com a promessa de serem publicados. No romance, Carolina lembra sua infância e juventude na cidade de Sacramento (MG), no período pós-abolição, enquanto reflete sobre as condições socioeconômicas da população negra. No entanto, o livro foi lançado apenas na França, como Le Journal de Bitita. “As alterações dos manuscritos foram inúmeras, não só do título, como também do conteúdo, da forma, da organização e da omissão de partes”, lamenta a historiadora Raquel Barreto, cocuradora da exposição. Em 1986, a obra foi traduzida do francês e lançada em português como Diário de Bitita (Bitita era o apelido familiar da escritora durante a infância).

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Essa é apenas uma das etapas da trajetória de Carolina que estão sendo reveladas na mostra, resultado de dois anos de pesquisas. Outra narrativa muito comum sobre a escritora é a de que seu talento com a escrita foi “descoberto” pelo jornalista Audálio Dantas e só a partir daí ela apareceu na mídia. Porém a exposição mostra que a escritora teve sua primeira publicação no jornal Folha da Manhã Carolina Maria, Poetisa Preta — já na década de 1940, quase 20 anos antes da famosa matéria sobre a escritora assinada por Audálio Dantas. 

A exposição mostra que Carolina foi muito mais do que a personagem exótica criada pela imprensa, uma “escritora favelada”, segundo os curadores Raquel Barreto e Hélio Menezes, doutorando em Antropologia Social pela USP. Para eles, Carolina possuía várias qualidades, uma delas a de ser uma “intérprete literária do País”. O material expõe a subjetividade de Carolina para além da discussão da fome, que é uma forma como ela tem sido interpretada usualmente. Como lembra a escritora Conceição Evaristo, “Carolina está falando de uma fome que é uma reflexão sobre a própria condição humana”. Raquel conta que os 300 itens da seleção, entre fotografias, vídeos e reportagens, mostram, por exemplo, a consciência de Carolina, de sua negritude, uma mulher muito atenta às questões de ordem política, mas também de ordem existencial.

"Uma palavra que não seja esperar" (2018), de Flávio Cerqueira, também faz parte da mostra - Foto: Cecília Bastos
“Uma palavra que não seja esperar” (2018), de Flávio Cerqueira, também faz parte da mostra – Foto: Cecília Bastos
Carolina escrevendo em seu diário - Foto: Cecília Bastos
Carolina escrevendo em seu diário – Foto: Cecília Bastos
Manuscrito de Carolina, que faz parte do acervo do Arquivo Público Municipal de Sacramento (MG) - Foto: Cecília Bastos
Manuscrito de Carolina, que faz parte do acervo do Arquivo Público Municipal de Sacramento (MG) – Foto: Cecília Bastos
"Bandeira Nacional" (2021), de Desali, uma das obras presentes na exposição no Instituto Moreira Salles - Foto: Cecília Bastos
“Bandeira Nacional” (2021), de Desali, uma das obras presentes na exposição no Instituto Moreira Salles – Foto: Cecília Bastos

“O EXILADO

Eu não esqueço aquele dia:

A vez primeira que li 

Era uma linda poesia

E a emoção que senti.

O meu autor prediléto

O imortal Gonçalves Dias

Eu lia com muito afeto

Os seus livros, de poesias

Pobre poeta. exilado.

Nas terras que não é sua.

Sente saudades dos prados

Das nossas noites de lua.

Minha terras que não é sua.

Sente saudades dos prados 

Das nossas noites de lua.

Minhas terra têm brilhante 

Nosso céu é cor de anil.

O poeta lá mui distante

Tem saudades do Brasil.

O que fez Gonçalves Dias 

Para ser um exilado?

Será que escrever poesias,

_É pecado?” 

(Poema inédito de Carolina Maria de Jesus) 

Os itens da mostra estão no 5º, 8º e 9º andar do edifício do IMS, na Avenida Paulista. O conteúdo é diverso, desde textos e uma linha do tempo sobre a escritora nas paredes com a paleta de cores vermelho, azul e branco até vídeos e esculturas no centro das salas. A exposição é dividida segundo aspectos da vida de Carolina, como a maternidade, o contexto histórico e político em que ela estava inserida, obras literárias, o envolvimento com o ativismo negro e o estilo de escrita, entre outros temas. 

Linha do tempo – Foto: Cecília Bastos

A autora mineira ficou famosa com a primeira publicação, Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada (1960), composto de diários escritos na favela do Canindé entre os anos de 1955 e 1960. E depois escreveu uma espécie de continuação, Casa de Alvenaria (1961), livro criado já em lugares de classe média, em Osasco e no bairro de Santana, na zona norte paulistana, e que neste ano está sendo relançado pela Editora Companhia das Letras. Embora esses livros tenham popularizado Carolina como escritora de diário, ela tem uma vasta produção em outros gêneros e temas. Para a curadora Raquel, a importância da exposição é apresentar Carolina a partir de seus próprios manuscritos e outras imagens e a conexão da história da escritora com as artes visuais. 

Facetas de Carolina – Foto: Cecília Bastos

Depois de apreciar o preto-e-branco das fotografias no 8º andar, como a que mostra Carolina na favela, escrevendo, e a que registra o seu primeiro voo de avião, antes de embarcar para o lançamento de Quarto de Despejo no Uruguai, posando sorridente, no 9º piso o público pode observar o colorido dos figurinos, material que está na base das criações de artistas como Rainha Favelada, que apresenta uma obra comissionada para a exposição, e Arthur Bispo do Rosário. Essas manifestações artísticas dialogam com as experimentações de Carolina com tecidos. No mesmo espaço é exibida a obra de Carolina como musicista, já que ela compunha canções, cantava e tocava violão, além de costurar. Ela chegou a gravar um disco com músicas de sua autoria. Com 12 faixas, o raro LP Carolina Maria de Jesus, que pertence ao Acervo José Ramos Tinhorão, sob a guarda do IMS, é exibido na mostra. O público também pode ouvir as canções do álbum, que versam sobre o cotidiano e as relações de classe e gênero. 

Carolina, multiartista – Foto: Cecília Bastos

Além de o público estar em contato com originais da autora, grande parte deles vinda do Arquivo Público de Sacramento, a mostra inclui também trabalhos de cerca de 60 artistas que dialogam com os temas investigados por Carolina. Um exemplo é a obra de Helô Sanvoy, Minuto de silêncio (2018), realizada com recortes de jornais com reportagens sobre Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada em 2018. Assim como Marielle, “Carolina é presente, ela não ficou no passado”, segundo Raquel. Para a curadora, a força e o poder dela de mobilizar o interesse à literatura são atuais e suas obras são contemporâneas por conta da descrição de dificuldades econômicas e desigualdades sociais profundas em seus textos, que persistem no Brasil. “Acaba sendo triste ver que o País ainda está nesse quadro.”

“Eu não tenho complexo de cor, eu gosto de ser preta. Se Deus enviasse-me

branca creio que ficava revoltada. Quando leio nos jornais ‘Carolina Maria de

Jesus, a preta da favela’, fico contente. Favela é lugar dos pobres, é a

manjedoura da atualidade. Cristo nasceu numa manjedoura, se renascer será

numa favela. O recanto dos que não podem acompanhar o custo de vida.”

(Trecho de manuscritos de Carolina Maria de Jesus)

A obra de Carolina é importante para os movimentos sociais que lutam pelo antirracismo, pelo letramento e pela moradia, de acordo com os curadores. “Carolina é uma referência para esses movimentos, ela é um ícone.” Na mostra, é possível observar como Carolina interpretou as contradições, a política e a desigualdade do Brasil de seu período. Raquel destaca que Carolina apresenta pontos de vista de personagens que foram apagados das narrativas oficiais escritas, majoritariamente por autores homens e brancos. Carolina faz assim um interessante contraponto aos cânones literários vigentes no Brasil. “Carolina tornou-se um símbolo de resistência para os movimentos negros contemporâneos, referência para vertentes do feminismo negro, para a literatura de autoria negra e periférica. Um ícone de um Brasil insubmisso, que colocou em xeque um projeto de modernidade excludente, que era moldado quando a autora lançou seu primeiro livro’”, afirma a curadora.

Para Monique de Souza, uma das visitantes da exposição, a mostra é emocionante. “Vários obstáculos que Carolina descreve em seus textos devido à cor da pele, inclusive de forma muito bonita, eu também passei. Eu me vejo muito nela”, afirma Monique.

Marcha do Movimento Negro Unificado (MNU), em São Paulo, 7 de julho de 1978 – Foto: Reprodução

A exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os Brasileiros é gratuita e está disponível para visitação até dia 30 de janeiro de 2022 no Instituto Moreira Salles (Avenida Paulista, 2.424, em São Paulo). Para visitar a mostra, é preciso realizar agendamento prévio no seguinte site: www.sympla.com.br/imspaulista. Os horários de funcionamento são entre terça a sexta-feira, das 12 às 19 horas, e aos sábados, domingos e feriados (exceto segundas-feiras) das 10 às 19 horas. A última entrada é às 18h. 

Quebradinha 7 (2020/2021), de Nenê. Foto: Cecília Bastos
Quebradinha 7 (2020/2021), de Nenê. Foto: Cecília Bastos
"Carolina & Ativismos negros". Foto: Cecília Bastos
“Carolina & Ativismos negros”. Foto: Cecília Bastos


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