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Vencedora do Slam BR, Kimani quer mostrar à periferia que é possível ‘cruzar a fronteira’

Campeã do torneio de poesia falada vai representa o Brasil na Copa do Mundo de Slam, na França, no ano que vem

KIMANI/ARQUIVO PESSOAL
KIMANI/ARQUIVO PESSOAL
Representante de São Paulo no torneio nacional, a artista venceu com uma poesia em que resgata as vozes do passado. 'Pensei muito como seria se os antepassados tivessem voz, como seria o discurso de uma mulher escrava para a sinhá'

São Paulo – A poeta Cinthya Santos, a Kimani, foi a campeã da 6ª edição do Slam BR, campeonato brasileiro de poesia falada, no último domingo (15). A artista representará o Brasil, em 2020, na Copa do Mundo de Slam, na França. Para ela, sua presença na Europa vai além de uma vitória pessoal, mas é também coletiva, carregando o sonho de muita gente da periferia na bagagem.

Representante de São Paulo no torneio nacional, a poesia da vencedora resgata as vozes do passado, em que escravos questionam o fato de serem mortos diariamente. “Eu pensei muito como seria se os antepassados tivessem voz, como seria o discurso de uma mulher escrava para a sinhá, com esses questionamentos do porquê tanta gente preta morre”, explica, em entrevista às jornalistas Marilu Cabañas e Nahama Nunes, da Rádio Brasil Atual, na sexta-feira (20).

Presente em pelo menos 20 estados brasileiros e em 200 comunidades, a chamada batalha surgiu em 2008. No slam, o júri é formado pelo próprio público, que atribui notas aos poemas falados. Apesar do crescimento do número de mulheres negras presentes no evento nacional, Kimani diz que duvidou das chances de ser eleita a melhor. O motivo, além de reconhecer o talento dos concorrentes, foi o racismo estrutural, que tem entre seus efeitos mais negativos, o de limitar as perspectivas.

“A gente começou a batalha do Slam na quinta-feira (12) e quando chegou o sábado (14), eu não acreditava que estava ali. Eu não acreditei tanto em mim, não me sinto a melhor poeta do Brasil, porque é um processo de desconstrução e se permitir a estar nesses espaços”, conta.

Na escola, Cinthia sonhava ser publicitária, mas a então aluna viu professores dizendo que não seria possível por ser negra. Ela afirma que essa vitória no Slam e a futura presença na França podem servir de motivação para outras pessoas negras e da periferia. “Eu quero que seja uma passagem bonita e que as pessoas do Brasil possam ver que é possível chegar lá. A partir do momento que a gente cruza essa fronteira, as pessoas vão ver que também podem. Eu sou uma das mulheres pretas que foi para lá, mas não serei a última.

Senso de comunidade

A jovem Cinthia é da periferia, é do Grajaú, no extremo sul da capital paulista. Em 2017, ela venceu o Slam SP e foi vice-campeã nacional, desde então vem chamando atenção por seus versos afiados. A rapper Kimani busca levar sua quebrada para onde for e voltar para casa com as reflexões que absorve no ‘centro da cidade’. “Nunca vou esquecer de onde vim. Se a gente chegar no Centro e se vislumbrar, não entendemos nada do processo”, alerta.

A valorização por sua raiz vem por meio da relação com os avós, conta a poeta, que ensinaram a então menina a lidar com o racismo e se amar. “Nunca vou baixar a cabeça. Eles mostraram para mim que não somos inferiores, pois descendemos de reis e rainhas e precisamos lembrar disso o tempo todo”, acrescenta.

Espelhos

Para ela, a empatia é um dos pilares para a resistência ao genocídio negro e ao desmonte de políticas públicas voltadas à população negra do país. A poeta afirma que ter mais “noção de comunidade” deixou as coisas menos pesadas. “É só ter empatia, olhar para o lado e se colocar no lugar das pessoas, acho que a gente se fortalece mais. Nós precisamos ter essa noção de coletivo, que nos foi tirado, pois quando você tira uma pessoa, você só enfraquece”, disse.

Em março deste ano, para marcar a estreia no Brasil da série americana The Handmaid’s Tale – O Conto da Aia, a Globoplay lançou no YouTube um vídeo com a poeta paulistana declamando seu texto intitulado Mostra Pra Eles, Mulher. A série retrata uma sociedade que, em crise de infertilidade, é dominada por fundamentalistas religiosos e em que as mulheres perderam seus direitos, servindo apenas para o serviço reprodutivo de casais ricos.

Apesar da boa visibilidade que o trabalho proporcionou, ela se diz incomodada com o estereótipo criado pelas empresas sobre os negros periféricos. “Será que eu sempre quero fazer coisas só em relação ao Mês da Consciência Negra? Eu só quero ser visto na televisão como estereótipo da quebrada? Não somos mais do que isso? A gente ocupa espaços, mas há uma demarcação. Seu rosto está ali, mas num papel esperado.”

Ouça a entrevista: