Da floresta

Thiago de Mello, quase aos 90, segue cantando contra a escuridão

Homenageado em evento na Biblioteca Mário de Andrade, poeta amazonense recitou e cantou

divulgação

O poeta amazonense Thiago de Mello, prestes a completar 90 anos

São Paulo – Já passava das 23h da terça-feira (15) quando um cansado mas animado Thiago de Mello deixava a Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo, depois de uma noite de homenagens, declamações e seresta por seus 90 anos, que serão completados no próximo dia 30. Um cantor do “Brasil de dentro”, como define seu filho Thiago Thiago, que cantou ao lado do pai quase ao final do evento, musicando um dos poemas do autor amazonense: “Sonhei que estavas dormindo/ Num campo de margaridas”.

O chamado poeta da floresta – é amazonense de Barreirinha e mora à beira do Rio Andirá, a 330 quilômetros de Manaus – também recebeu flores de estudantes que participaram de ocupações em escolas paulistas, no final do ano passado, contra o projeto de “reorganização” do governo estadual. Diante de duas centenas de pessoas que lotaram o auditório da biblioteca, sempre de branco, agradeceu pela noite. “Eu reparto meu canto de amor. Eu me despeço para permanecer com vocês.” E recitou mais um pouco: “Mais que viver, o que importa/ é trabalhar a mudança/ (antes que a vida apodreça)/ do que é preciso mudar”. Ele ainda subiria ao terraço, para ser recebido com serenata, ao som de Cordas de Aço, de Cartola.

Seu filho Manduka (Alexandre Manuel Thiago de Mello), que morreu em 2004, também foi lembrado na cantoria dos Thiagos, pai e filho, interpretando Linda Vida, dos anos 1970 – letra de Thiago de Mello e melodia de Manduka. “Faz uma poema pra essa música, companheiro?”, pediu Manduka ao pai. Era assim que se tratavam, o poeta e o “pássaro-cantor” que se calou aos 52 anos.

Filho de Ricardo Ramos e neto de Graciliano Ramos, o vice-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE), Ricardo Ramos Filho disse participar “de forma muito reverente, diante de um dos meus ídolos”, referindo-se a Thiago, destacando tanto a beleza do texto como o engajamento político do poeta e citando o poema Fio de Vida: “Muita vez não quis a vida/ A vida foi quem me quis”. “Que a vida continue te querendo, sempre”, disse Ricardo.

Luzes

O professor Pasquale Cipro Neto emocionou-se ao subir ao palco e lembrar da importância da obra de Thiago de Mello na resistência à ditadura. Referiu-se aos “perseguidos pela dita” e emendou: “Vamos bater na madeira”, tocando três vezes no piano, sob aplausos. “Nós procurávamos luzes”, disse a Thiago, citando uma de suas obras mais conhecidas, Faz Escuro Mas Eu Canto. “Sempre acreditei que a salvação está na arte, e tu ajudaste a nos salvar”, completou Pasquale, para então declamar Madrugada Camponesa.

“Sua obra, por si só, honra o povo brasileiro”, disse o vereador Jamil Murad (PCdoB), autor de projeto de lei, prestes a ser votado, que dará a Thiago o título de Cidadão Paulistano. “É um poeta entrelaçado com o sentimento do povo por uma vida melhor.” Também estavam lá a vice-prefeita de São Paulo, Nádia Campeão, e os secretários municipais Nabil Bonduki (Cultura) e Eduardo Suplicy (Cidadania e Direitos Humanos). Além da prefeitura e da biblioteca, o evento foi organizado pela UBE e pela Fundação Maurício Grabois.

Também poeta e amigo do homenageado, Ciro Figueiredo lembrou de ter lido várias vezes, inclusive naquele local, a obra mais conhecida de Thiago, Os Estatutos do Homem – escrita logo depois do golpe de 1964, quando ele era adido cultural no Chile, onde se tornou amigo de Pablo Neruda. “Este palco foi usado muitas vezes para proclamar a liberdade da palavra”, afirmou Ciro, que chamou o poeta de “menino” e declarou Uma Toada de Ternura: “Mas leva contigo a infância/ como uma rosa de flama/ ardendo no coração:/ porque é da infância, Leonardo,/ que o mundo tem precisão”.

Os Estatutos foram lidos a três vozes, a começar por Fernanda de Almeida Prado, autora do “roteiro poético” da noite.

Artigo IV
Fica decretado que o homem 
não precisará nunca mais 
duvidar do homem.

Que o homem confiará no homem 
como a palmeira confia no vento, 
como o vento confia no ar, 
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
O homem confiará no homem 
como um menino confia em outro menino.

(…)

Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

O cantor e compositor Jean Garfunken também declamou um poema de Thiago, Terra Traída, da obra mais recente do autor, Acerto de Contas, lançado em 2015: “Advertência: / quando queimam a mata, / enlouquecidos de pavor, / os pássaros se esquecem dos seus cantos”.

 

Leia mais‘Os Estatutos do Homem’, indignação do poeta contra o arbítrio, também faz 50 anos