Lição de cidadania

‘Os meninos da biblioteca’ e a luta vitoriosa da população contra a especulação imobiliária

Em obra infanto juvenil, autor une personagens fictícias e reais na defesa da biblioteca municipal Anne Frank contra um projeto que pretendia vender o quarteirão onde está localizada

Arquivo/Prefeitura Municipal de São Paulo

Espaço cultural, a Biblioteca Anne Frank, no Itaim, provavelmente teria sido demolida se não fosse a resistência popular

São Paulo – Era agosto de 2011. Num movimento crescente, moradores do Itaim Bibi, entre eles a atriz Eva Wilma, foram às ruas. Em vários atos, protestavam contra um projeto do então prefeito Gilberto Kassab, hoje ministro das Cidades, de vender um quarteirão inteiro no bairro do Itaim Bibi, zona sul da capital paulista. A justificativa da operação era obter recursos para a construção de creches.

Já os manifestantes estavam em defesa de uma área conhecida como quarteirão da cultura, a última arborizada do bairro, onde estão um posto de saúde, um centro de apoio psicossocial (Caps), uma unidade da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), uma creche, duas escolas, um teatro e uma biblioteca.

O barulho foi tamanho e foram tantas as ações articuladas que o Tribunal de Justiça de São Paulo proibiu a negociação do terreno enquanto o órgão estadual de preservação do patrimônio público, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), não concluísse seu estudo de tombamento do quarteirão. A prefeitura bem que recorreu, mas não obteve êxito.

Em meio a tanto desgaste, o prefeito acabou desistindo do negócio em fevereiro de 2012. A reprovação do projeto pela população foi determinante ao pressionar o Condephaat. A população foi ganhando tempo, a licitação anunciada não chegou a ser realizada e a ideia foi abandonada.

O episódio, um dos mais bem-sucedidos exemplos de participação popular, é pano de fundo de uma história infantojuvenil que, além de divertir crianças e adolescentes, desperta nesse público justamente a vontade de participar das decisões.

RBA
Moradores resistiram ao projeto de venda da área. (Foto: Moacyr Lopes Junior/Folhapress)

A história, que ganhou destaque na imprensa, é contada também pelo jornalista João Luiz Marques no recém lançado Os Meninos da Biblioteca (Editora Biruta). O morador do Itaim Bibi durante sua infância, que voltou ao bairro mais tarde, integrando o movimento em defesa do quarteirão, tece uma trama que une personagens da vida real, outros criados por ele e alguns de obras de autores consagrados em torno da defesa da Biblioteca Municipal Anne Frank, localizada naquela área em disputa.

Não se contentando mais em escrever apenas para seu blog, o protagonista Heitor segue em busca de novas histórias para contar. Até que Narizinho – sim, a personagem de Monteiro Lobato – mostra a ele o tema do livro: a luta de estudantes, pais e professores em defesa da biblioteca.

O movimento, no livro, ganha ainda o apoio de personagens que habitam a biblioteca. Entre eles, Boka, o líder da criançada em Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnár. Na história publicada no começo do século 20, o escritor húngaro narra a organização dos meninos para defender o terreno baldio onde brincam.

“Essa luta, com a qual me identifiquei em minha infância, é o mesmo argumento da defesa da biblioteca. Daí a inspiração no nome”, conta Marques.

Participam também da história as crianças de Roma, que numa época sem WhatsApp e Facebook, conseguiram se comunicar e se reunir para comer um bolo gigante que surge no céu de num bairro, na obra Um Bolo no Céu, do italiano Gianni Rodari. E até o médico Simão Bacamarte, personagem principal de O Alienista, de Machado de Assis. Rachel de Queiroz e  Edgard Allan Poe também emprestam personagens à luta contra a possível demolição do Anne Frank.

Juntos, eles se conscientizam do poder da pressão popular. Numa trama em que a fantasia dá vida às lutas da realidade, vão aprendendo o significado de instrumentos da cidadania como audiência pública, assembleias, poder legislativo, ações, liminares e projetos de lei – aos quais, na realidade, o movimento em defesa do quarteirão recorreu para ganhar tempo e impedir a prefeitura de consumar o projeto.

Como todo autor de literatura infantojuvenil, Marques ressalta que sua história pode ser lida por adultos também. No entanto, ao criar o personagem Heitor, que tem todo esse inconformismo, pretende incentivar a participação social entre os mais novos. E dar um caráter mais simpático ao ativismo. “A política é muito distorcida, vista como algo ruim, antipático. O próprio conceito de participação política acabou deturpado”, afirma o escritor.

Assim como na realidade, na ficção saiu vitoriosa a mobilização contra a falácia do então prefeito, de que construiria 200 creches na cidade com os recursos advindos da transação. O fato é que havia recursos do governo federal para essas obras. Porém, por questões políticas da época, o gestor preferiu não apresentar nenhum projeto para obter os repasses.

Unicef incentiva o protagonismo dos adolescentes

A participação cidadã de adolescentes é um dos eixos da Plataforma dos Centros Urbanos, iniciativa que busca um modelo de desenvolvimento inclusivo das grandes cidades, contra as desigualdades que afetam crianças e adolescentes. Para isso, o organismo internacional apoia os municípios no acompanhamento dos processos de participação, oferecendo metodologias e dando visibilidade às boas práticas adotadas. Um deles é o Guia de Participação Cidadã dos Adolescentes, que sugere uma série de ações que podem ser realizadas pelas prefeituras para incluir os adolescentes nas estratégias de redução das desigualdades, bem como dicas sobre como apoiar processos participativos nas instâncias formais consultivas e deliberativas das políticas públicas, e ao mesmo tempo promover iniciativas de participação dos adolescentes em atividades livres.