Literatura

Gabriel García Márquez morre aos 87 anos

Nascido na Colômbia, com residência no México, escritor foi Nobel da Literatura de 1982. Quadro se complicou devido a infecção respiratória

Mario Guzman/EFE

Gabo, nascido em 1927, era um dos expoentes do realismo fantástico latino-americano

São Paulo – O escritor colombiano Gabriel García Márquez morreu hoje (17), aos 87 anos. Entre março e abril, Gabo, como era conhecido, ficou internado na Cidade do México, onde morava, devido a uma infecção respiratória. As informações divulgadas por redes de televisão como a “Televisa” dão conta que ele morreu em sua casa, no sul da capital mexicana, acompanhado de familiares.

A sua obra mais conhecida é Cem Anos de Solidão, de 1967, um marco da literatura latino-americano. Mas a lista de obras do Nobel de Literatura de 1982 é extensa. Inclui Crônica de uma Morte Anunciada, O Amor nos Tempos do Cólera, O coronel não tem quem lhe escreva, O Outono do Patriarca, Doze Contos Peregrinos e Memória de Minhas Putas Tristes, entre outros livros.

Sua primeira obra literária, La Hojarasca, é de 1955, e inclui pela primeira vez o povoado de Macondo, que depois se consagraria no imaginário mundial em Cem Anos de Solidão. O povoado, baseado na vila de onde Gabo saiu, se tornou tão famoso que em 2006 Aracataca realizou um plebiscito para decidir se adotava Macondo como nome oficial – a ideia acabou derrotada.

Ao longo dos anos Gabo se consolidou como um dos expoentes do realismo fantástico latino-americano, representado também pelo peruano Mario Vargas Llosa, de quem se tornaria desafeto, pelos argentinos Julio Cortázar e Jorge Luis Borges, e pelo mexicano Carlos Fuentes, entre outros. Além dele, outros cinco escritores da região receberam o Nobel: os chilenos Gabriela Mistral (1945) e Pablo Neruda (1971), o guatemalteco Miguel Ángel Astúrias (1967), o mexicano Octavio Paz (1990) e o peruano Mario Vargas Llosa (2010).

“Não sei se desgraçada ou afortunadamente, creio que (a literatura) é uma função subversiva”, declarou Gabo na década de 1980. “No sentido que não conheço nenhuma boa literatura que sirva para exaltar valores estabelecidos.”

Repercussão

“Mil anos de solidão e tristeza pela morte do maior colombiano de todos os tempos!”, afirmou, pelo Twitter, o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos.

Também pelo Twitter, o presidente peruano Ollanta Humala afirmou que a “América Latina e o mundo inteiro sentirão a partida deste sonhador. Descansa em paz, Gabriel García Márquez, lá em Macondo”. O presidente mexicano, Enrique Peña Nieto,  também expressou pesar pela morte “de um dos maiores escritores de nossos tempos”.

O escritor Jon Lee Anderson também se manifestou na rede social: “Descansa em paz, querido Gabo. Sentiremos saudades para sempre, como a um pai. Teu legado é muito grande”. Um dos principais jogadores da história da Colômbia, Carlos Valderrama, escreveu: “Morre o ser humano, vive a lenda. Gabo, que fez o mundo sonhar com ausas letras, nos abandonou. Descanse em paz”.

A presidenta Dilma Rousseff, pelo Twitter, lamentou a morte de Gabo: “Foi com tristeza que soube da morte do escritor colombiano Gabriel García Márquez”, disse. Ela comentou, ainda, sobre o estilo “encantandor” da obra do escritor: “Dono de um texto encantador, Gabo conduzia o leitor pelas suas Macondos imaginárias como quem apresenta um mundo novo a uma criança. Seus personagens singulares e sua América Latina exuberante permanecerão marcados no coração e na memória de seus milhões de leitores”.

Já a escritora Nélida Piñon, considerada uma das melhores amigas de Garcia Márquez no Brasil, ressaltou a falta que o romancista fará: “Ele deixa um enorme vazio na literatura mundial que, pelo menos, pode ser preenchido em parte pela própria obra que deixou, afirmou, nesta quinta-feira, à agência EFE, a autora de A Casa da Paixão (1972), A Doce Canção de Caetana (1987) e A República dos Sonhos (1984).

A Fundação José ‎Saramago reproduziu mensagem do escritor português – que ganhou o Nobel de Literatura no ano de 1998 e morreu em 2010 – da época em que Saramago teceu elogios a Cem Anos de Solidão. “Gabriel García Márquez usou o seu engenho para abrir e consolidar a estrada do depois mal chamado “realismo mágico”, por onde logo avançaram multidões de seguidores e, como sempre acontece, os detractores de turno. O primeiro livro seu que me veio às mãos foi Cem Anos de Solidão e o choque que me causou foi tal que tive de parar de ler ao fim de cinquenta páginas. Necessitava pôr alguma ordem na cabeça, alguma disciplina no coração, e, sobretudo, aprender a manejar a bússola com que tinha a esperança de orientar-me nas veredas do mundo novo que se apresentava aos meus olhos. Na minha vida de leitor, foram pouquíssimas as ocasiões em que uma experiência como esta se produziu. Se a palavra traumatismo pudesse ter um significado positivo, de bom grado a aplicaria ao caso. Mas, já que foi escrita, aí a deixo ficar. Espero que se entenda”, destaca o texto.

Vargas Llosa, amigo da juventude e desafeto de toda a idade adulta, soube da notícia na cidade andina de Ayacucho, aonde viajou para passar a Semana Santa junto com a família. “Morreu um grande escritor cujas obras deram grande divulgação e prestígio à literatura de nossa língua (espanhola)”, declarou à rede de televisão Canal N.O autor peruano acrescentou que os romances de García Márquez “sobreviverão e continuarão ganhando leitores”.

Vargas Llosa e García Márquez foram grandes amigos até meados de 1976, quando tiveram uma briga por motivos nunca explicados que os afastou, mas sempre mostraram respeito e consideração pela obra um do outro.

Histórias

Gabo foi filho de Gabriel Eligio García, telegrafista primeiro e boticário depois, e de Luisa Santiaga Márquez Iguarñan, cuja história de amor, dificultada pela oposição do pai dela, com o coronel Nicolás Ricardo Márquez, serviria de inspiração a seu filho para escrever O Amor nos Tempos do Cólera.

García Márquez era o mais velho de 11 irmãos e passou seus primeiros anos com seus avós maternos, com grande influência de seu avô. Os nove filhos extramatrimoniais de seu avô; o costume de sua irmã Aida Rosa de comer terra ou a greve das produtoras de banana da Colômbia de 1928, que acabou com o fuzilamento dos grevistas, foram fatos que marcaram a infância de Gabo e que, de uma maneira ou outra, acabariam em suas obras.

Desde muito cedo, mostrou uma grande imaginação, que começou a modelar em poemas em sua adolescência, enquanto estudava no colégio jesuíta de San José, em Barranquilla. No Liceu Nacional de Zipaquirá, perto de Bogotá, escreveu para o jornal interno e, em 1944, publicou “Canção” no suplemento literário do jornal El Tiempo.

Naquela época, conheceu aquela que viria a ser sua esposa, Mercedes Barcha, em uma viagem a Sucre – se casariam em 1958 e teriam dois filhos, Rodrigo e Gonzalo e se matriculou na Faculdade de Direito e Ciências Políticas da Universidade Nacional de Bogotá. Mas sua criatividade o levou a deixar a carreira de Direito e a se concentrar na literatura e no jornalismo no jornal El Universal de Cartagena, onde começou a colaborar em 1948.

Em 1959, impulsionou a revista Crônica, símbolo do chamado “Grupo de Barranquilla”, que marcou em meados de século 20 a cultura colombiana. Em 1961, se mudou para o México, onde trabalhou em revistas de pouca importância e publicou seu segundo romance, O coronel não tem quem lhe escreva. Além disso, o manuscrito de A má hora ganhou um prêmio literário em Bogotá, e García Márquez começou a trabalhar em O outono do patriarca.

Em nota publicada na página da Fundação para o Novo Jornalismo Ibero-Americano (FNPI, na sigla em espanhol), o diretor-geral da entidade, Jaime Abello Banfi, comunicou oficialmente a morte de Gabo e, além de agradecer aos ensinamentos do escritor e jornalista, garantiu que a FNPI seguirá com a missão que originou a instituição, que foi criada por Gabo no ano de 1994, em Cartagena das Índias, na Colômbia, por sua preocupação com o estímulo à vocação jornalística, à ética e à correta descrição dos fatos.

Confira a íntegra do texto:

“Nosso querido Gabriel García Márquez se foi físicamente, mas permanece vivo entre nós através de suas ideias, seus textos, sua memória em milhões de personagens que amamos em todo o mundo e pelo legado representado no trabalho de suas fundações e escolas de jornalismo. Na sua fundacão, em Cartagena, a FNPI, nos sentimos orgulhosos de haver desfrutado da companhia e amizade de Gabo, jornalista e educador, comprometido a fundo com o jornalismo como uma paixão de toda a vida e como uma forma de exercer cidadania ativa.

Gabo viveu uma vida plena e incomparável. Recordaremos-lhe como un criador genial, um ser humano pleno de sabedoria, humor e ternura, um trabalhador incansável, que soube nos mostrar que a melhor maneira de aproveitar a trajetória de vida é seguindo a vocação pessoal com persistência e disciplina como base para o talento e a paixão.

Gabo nos deixa sua força. Assumimos com seriedade e entusiasmo, da mão de nossos mestres e aliados, a responsabilidade de que cada dia mais jornalistas de América Latina possam conhecer suas ideias, estudá-las, aplicá-las e, inclusive, questioná-las, mas sempre com a convicção de que este é um ofício que se aprende e aperfeiçoa com a prática, escutando toda a gente e despertando todos os sentidos para ver o que não mais se vê, para que as sociedades se informem melhor.

Obrigado, Gabo. Obrigado, mestre dos mestres. Cumpriremos seu conselho; seguiremos adiante com suas oficinas, seu prêmio, trabalhando de muitas formas por uma nova e criativa época para o melhor ofício do mundo.”

gabo_efe_arquivo.jpg

_____________________

Gabo, cigano do imaginário

Mas que importa o calendário? Para o artesão do tempo Gabriel García Márquez, ele é apenas um movimento contínuo, fluido e circular esculpido a cada letra

Por Maria Angélica Ferrasoli – Publicado na Revista do Brasil nº 11, abril de 2007

José Arcadio Buendía, patriarca de Cem Anos de Solidão, acordou bem disposto nessa outra terça-feira, tão diferente daquela equivocada em que tivera de ser amarrado ao castanheiro por sua lucidez extrema. Era dia 6 de março de 2007. O escritor Gabriel García Márquez, seu criador, acabara de completar 80 anos. E Macondo já não era uma aldeia de 20 casas de barro e taquara à beira de um rio de águas diáfanas, mas o povoado imortalizado de Gabo, a cidade dos espelhos (ou das miragens) que o levou ao Prêmio Nobel de Literatura em 1982 e há quatro décadas continua a fascinar leitores a partir de um veloz caleidoscópio de histórias cujo eixo central não se desgasta, aliás, alimenta-se da luz do tempo.

A Macondo de García Márquez se chama Aracataca, na Colômbia, onde ele nasceu e para onde voltou com a mãe quando foi preciso vender a casa dos avós. É assim, ao menos, que o escritor dá início a Viver para Contar, o primeiro capítulo da autobiografia, lançado há cinco anos. Ali estão, para quem quiser reconhecer, os principais personagens de Cem Anos de Solidão na sua forma mortal, habilmente embaralhados em qualidades e obsessões, mas tão cristalinos quanto os frascos milagrosos de Melquíades, o cigano cuja sabedoria estimulou sem trégua a efervescente imaginação do primeiro Buendía e acabou por registrar em pergaminhos cifrados toda a história da família um século antes de seu final.

Ali estão o avô de Gabo com o morto que lhe pesa às costas, o sábio catalão, os amigos do último Aureliano, a United Fruit Company (a companhia bananeira que tantas desgraças havia de trazer a Macondo) e, principalmente, a casa eternizada do escritor. “Os quartos eram simples e não se diferenciavam entre si, e só precisei dar uma olhada para perceber que em cada um de seus incontáveis detalhes havia um instante crucial da minha vida”, relata.

Para o crítico literário norte-americano Harold Bloom, um dos mais conhecidos do mundo ocidental, Cem Anos de Solidão é “um milagre que só acontece uma vez, menos um romance do que uma Escritura, a Bíblia de Macondo”. Em sua avaliação, o livro traz “uma espécie de fadiga estética: a quantidade de vida, em cada página, ultrapassa nossa capacidade de absorção”. Talvez tenha sido essa sintonia explosiva de existência e magia – que se reconhece e expande no chamado realismo mágico, ou fantástico, florescido em grande parte da América Latina durante a longa noite das ditaduras – a razão para que tantos tenham tentado “explicar” Macondo e sua gente, até que o próprio García Márquez resolveu pôr os pingos nos is e apresentar sua versão autobiográfica.

Até agora não publicou o segundo volume – preferiu, antes, lançar o belo Memórias de Minhas Putas Tristes, quase um conto com sabor de poema. Segundo as más línguas do noticiário, o colombiano não quer resgatar os motivos da briga que teve com o também escritor Mario Vargas Llosa em 1976, que lhe rendeu um olho roxo e na qual, consta, pelo menos uma senhora estava envolvida.

Delicadeza e jornalismo

É bem verdade que até uma história assim corrente do cotidiano não soaria vulgar ou agressiva na escrita primorosa de García Márquez. Tanto em sua obra-prima como nas dezenas de outras que já assinou, entre contos e romances (muitos deles levados para o cinema), episódios que por si só seriam de revirar o estômago do leitor são narrados com uma delicadeza de coronel Aureliano Buendía em tempo de ourives, quase estonteante de tão precisa.

É o caso do estupro de Cândida Erêndira (e sua Avó Desalmada), vendida ainda menina para começar a pagar os danos que causou à família: o que Erêndira vê não é seu agressor, mas fantásticos peixes multicoloridos boiando à sua volta. Ou a caçada aos 17 filhos do coronel Aureliano Buendía, numa imensa noite de terror; as famílias de grevistas surpreendidas pelos disparos da polícia na praça. O que a memória capta e registra, em todas essas passagens literárias, não se limita ao que se contou, e sim à forma como foi feito, e o que sobra é apenas deslumbramento.

Mas também aos que insistem em deixar bem firme a linha que separa realidade e fantasia, a narrativa de García Márquez é surpreendentemente objetiva. Basta ler sua produção jornalística (compilada em Textos do Caribe) ou livros-reportagens como Notícia de um Seqüestro, A Aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile ou ainda Relato de um Náufrago, a verdade sobre um naufrágio que pôs abaixo o contrabando feito pela própria Marinha da Colômbia e levou Gabo ao exílio. Publicada em forma de novela pelo jornal El Espectador, de Bogotá, durante 14 dias consecutivos no ano de 1955, a tragédia do marinheiro Luís Alejandro Velasco despertou a ira do então ditador colombiano Gustavo Rojas Pinilla. Na versão oficial, uma tormenta levara o navio a pique, mas é o excesso de carga que causa o desastre num dia de céu de brigadeiro.

De seus muitos contos, há igualmente para todos os (bons) gostos. A Última Viagem do Navio Fantasma parece escrito num só fôlego. No apaixonante O Afogado mais Bonito do Mundo, a partir desse morto descomunal que vai dar na praia, o povoado de pescadores se descobre e passa a se respeitar como comunidade. Instados a ter casas maiores com mesas e cadeiras mais firmes, a se comprometer com o pobre gigante desconhecido que suscita pena por sua desproporção e ciúme por sua imensa beleza, e compaixão, porque é evidente que não queria lhes causar tamanho incômodo, os habitantes locais lhe dão nome e família, de tal forma que acabam todos por virar parentes próximos. A vila miserável prepara-se então para ser tão digna e grande quanto seu afogado. Torna-se o povoado de Estevão, como Macondo é território de Gabo.

Para comemorar o 80º aniversário do escritor, autores, atores e políticos emprestaram a voz aos personagens de Cem Anos de Solidão. A leitura da obra foi realizada no mês passado em Madri. Homenagens também vieram da terra natal de Gabo, do México, onde vive, da Venezuela, de Cuba, onde a longa amizade com Fidel Castro levou-o a criar e dirigir a escola internacional de cinema e TV.

Há pouco tempo, um texto atribuído a Gabo na internet dava conta de uma enfermidade grave e uma suposta conversa sua com Deus. Fumante voraz durante muitos anos, daqueles que acendem um cigarro no outro, García Márquez negou a autoria, mas admitiu o tratamento de um câncer linfático, realizado no final da década de 90, do qual, aparentemente, conseguiu escapar e segue adiante. Debaixo do castanheiro, sob o sol implacável do Caribe, o espectro vivo de José Arcadio Buendía sorri para o futuro.

gabo_EFE_Alejandro-Ernesto.jpg

___________________________________

Gabo, o observador insaciável

Por Vitor Nuzzi

Publicado na RBA em 6/3/2012, ocasião dos 85 anos de Gabo e de 45 anos de Cem Anos de Solidão

São Paulo – Em março de 1981, Gabriel García Márquez recebeu em Cartagena das Índias um editor de Barcelona, que fazia uma escala na Colômbia. Depois de saborear uma comida criolla, participar de várias atividades e tomar 11 copos de uísque, foi embora atordoado com tantos acontecimentos em um só dia, mas não sem antes dizer ao escritor: “Você não inventou nada em seus livros. Você é um simples escrivão sem imaginação”. A história, narrada pelo próprio García Márquez em um livro de crônicas, pode dar a impressão de um cotidiano sempre fora do comum.

Hoje, o escritor nascido em Aracataca completa 85 anos. Nasceu em um domingo, “el primeiro de siete varones y cuatro mujeres”, às 9 da manhã, “con un aguacero torrencial fuera de estación”.O jornalista Eric Nepomuceno, amigo e tradutor do colombiano, diz que na verdade García Márquez é uma pessoa simples, mas um observador excepcional. “Ele vive com uma antena, uma rede perfeita para o mundo. É um observador insaciável.”

E 2012 reserva outros motivos de lembrança: 65 anos de seu primeiro conto (A terceira resignação, no jornal colombiano El Espectador, em 13 de setembro), 45 anos do lançamento de Cem Anos de Solidão (30 de maio de 1967), 30 do Prêmio Nobel e dez da publicação da primeira parte de suas memórias, Viver para Contar. Segundo o jornal espanhol El País, um dos principais presentes será dado pela editora Carmen Balcells, amiga e agente literária em Barcelona: além das tradicionais rosas amarelas das quais o escritor tanto gosta, será lançada a primeira edição eletrônica de “Cem Anos de Solidão” – a princípio, apenas em espanhol.

“Minha relação com ele tem sido uma experiência tão enriquecedora que já não lembro nem quando começou. Mas seguimos nessa nuvem de sonho, ainda mais agora, quando todos falam do mundo cibernético e dessa nuvem onde se podem alojar todas as histórias e os livros”, declarou Carmen ao El País.

Jornalista desde jovem, García Márquez criou em 1994 a Fundação Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), espaço de discussões e eventos sobre “a melhor profissão do mundo”, como diz o escritor. Mesmo tendo sido repórter – ou talvez por isso –, ele tem aversão a entrevistas. “Uns e outros (referindo-se a entrevistadores e entrevistados), por sua vez, não aprenderam ainda que as entrevistas são como o amor: são necessárias pelo menos duas pessoas para fazê-las, e só resultam boas e essas duas pessoas se querem”, escreveu.

A FNPI publicou uma página especial no Facebook para homenagear seu maestro.

Por ter “alergia a best-seller“, Eric Nepomuceno conta ter sido um leitor tardio de Cem Anos…. Começou com Relato de um Náufrago (1970) e seguiu com o que se tornaria seu favorito, Ninguém Escreve ao Coronel, de 1961. O próprio autor, conta Nepomuceno, classifica essa obra como “invulnerável”, que não teria como ser atacada. O jornalista só foi abrir Cem Anos… quase em meados dos anos 1970, “quando já era um clássico, sem dúvida um dos livros mais importantes escritos em qualquer idioma”.

Ele recorda de uma história curiosa ocorrida durante a preparação do lançamento de uma edição comemorativa dos 40 anos do livro. Foi quando se descobriu, como se diz no cinema, um erro de continuidade. “Um camarada (Aureliano Segundo) tem uma amante. Em certa altura do livro, ele sai da casa da amante e volta para a casa da amante. O livro já tinha milhões de exemplares e ninguém tinha percebido. Nem ele (García Márquez).” O caso foi motivo de diversão para autor e tradutor, que se conheceram em 1978, em Havana.

Nobel da Paz

Nepomuceno considera o escritor um caso singular. “A América Latina tem uma literatura fortíssima, criativa, que responde à nossa diversidade, mas ele vai além disso. Não só fez literatura de alto nível, como conseguiu o que nenhum outro conseguiu: ele não é popular, ele é querido”, diz. “Quando ganhou o Nobel de Literatura, ele brincava dizendo que tinha ganhado o Nobel da Paz.”

Na época, Gabo, como também é conhecido, era um interlocutor entre nações. “Era uma voz ouvida tanto pelos governos como pelas guerrilhas”, observa Nepomuceno. Ele lembra de revelação feita pelo escritor Fernando Morais no livro Os Últimos Soldados da Guerra Fria, lançado em 2011. Na obra, García Márquez surge como uma espécie de pombo-correio entre Fidel Castro e Bill Clinton. “Tanto o cidadão como o autor são figuras-chaves da nossa vida contemporânea.”

Sobre o amigo, Nepomuceno conta que uma de suas principais características é justamente preservar a vida pessoal, a privacidade. “Ele tem um sentido de máfia na amizade”, define. Afeto e fidelidade incondicionais aos amigos. Sem dúvida, Gabo ficará feliz com festas e homenagens que se façam e ele. “Mas a comemoração mesmo é com os amigos, a família.”

Traduções sempre reservam desafios, com suas alegrias e dificuldades, observa Nepomuceno. “No caso García Márquez, o truque é o rigor dele, a estrutura, a carpintaria que está por trás da própria frase, escapar do fluxo musical.”

Aos 85 anos, pode-se esperar mais um algum lançamento do autor de O Amor nos Tempos do Cólera (1985), Doze Contos Peregrinos (1992) e Memórias de Minhas Putas Tristes (2004), entre outras tantas obras? Nepomuceno deixa a questão em aberto. “Ele me diz há muitos anos que parou de escrever. Agora, a gente nunca sabe o que tem nas gavetas.”