coronavírus não acabou

‘Sem anistia, Tarcísio’: vítimas da covid pedem cobrança de multas e uso do dinheiro em pesquisas e tratamentos

Está para ser aprovado em São Paulo projeto que anistia aqueles que não pagaram suas multas por desrespeitar leis sanitárias durante a pandemia. Entre eles, Jair Bolsonaro

Marcio James/Semcom/PMM
Marcio James/Semcom/PMM
Além dos mais de 700 mil mortos no Brasil, pandemia deixou pessoas com sequelas ainda pouco conhecidas, que necessitam de cuidados e investimentos

São Paulo – O projeto de lei que quer dar anistia a multas pelo descumprimento de regras sanitárias durante a pandemia, de autoria do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) em São Paulo, é rechaçado por vítimas da covid e seus familiares. A proposta do governador bolsonarista, de abrir mão de pelo menos R$ 73 milhões para favorecer aliados, como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), e seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), além de senadores, ex-ministros e até deputados estaduais da base governista está em discussão na Assembleia Legislativa.

Na última quarta-feira (4), a oposição conseguiu barrar a aprovação ao longo de duas sessões extraordinárias, que duraram no total mais de cinco horas. Para os parlamentares dos partidos de esquerda, não se pode aprovar uma lei de anistia a Bolsonaro, que tomou diversas multas por não usar máscara em visitas e motociatas pelo estado de São Paulo. O ex-presidente, que zombou da covid e das vítimas da doença, tem R$ 1,08 milhão inscrito na dívida ativa do estado.

Já os deputados bolsonaristas, da base de Tarcísio, pregam a aprovação do Projeto de Lei (PL) 1.245/2023, apresentado em agosto com o pretexto de aprimorar as cobranças de créditos tributários inscritos na dívida ativa estadual. E também do “jaboti” inserindo a anistia àqueles que foram multados e não pagaram as autuações. Outros projetos nesse sentido, de deputados aliados, empacaram na Casa. Um dos principais argumentos dos apoiadores, que distorcem a realidade dos fatos, é que essas multas foram aplicadas como “perseguição” a Bolsonaro e seus seguidores.

“Irresponsabilidade sem tamanho”: anistia de Tarcísio

“É revoltante um projeto de lei para anistiar pessoas que foram multadas por não usar máscaras. E ainda mais saber que entre essas pessoas estavam autoridades, à frente do governo, como o então presidente e o atual governador, na época ministro”, disse à RBA Rosângela Silva, representante em São Paulo da Associação das Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid (Avico).

Na sua avaliação enquanto cidadã e membro da Avico, é “uma irresponsabilidade sem tamanho”. Até porque, conforme destacou, o pagamento da multa tem efeito pedagógico. “Era uma questão de saúde pública, que era agravada e que punha em risco a vida de muita gente”, lembrou. “Afinal, como afirmou o governo Tarcísio, para justificar a anistia, a cobrança era pedagógica e não arrecadatória. Ou seja, mais para advertir do que para onerar o cidadão, inclusive quem estava no poder.”

O esforço do governo no sentido de aprovar essa anistia, segundo Rosângela, expõe ainda o pior lado de um governo que demonstra trabalhar em favor de si próprio. “Estaria trabalhando para quem? A serviço de quem?” E também desmoraliza o estado diante da imposição de quaisquer outras medidas nesse sentido. “Como é que nós, eleitores, cidadãos, vamos respeitar qualquer ação que venha a nos cobrar financeiramente?”

Sobreviventes com sequelas ainda sem atendimento

Rosângela critica também os mecanismos administrativos que concedem prazos infinitos para o pagamento de multas como essas a ponto de serem inclusive anistiadas. “Só o ex-presidente Bolsonaro deve mais de um milhão em multas. Esse dinheiro poderia ser transferido para programas relativos à própria covid.”

Afinal, conforme destacou, embora não esteja mais em vigor a emergência sanitária decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e no Brasil por autoridades sanitárias, ainda há casos de covid. E mais grave: milhares de pessoas que sobreviveram à doença mas ficaram com sequelas complexas e ainda desconhecidas. A situação, segundo ela, requer recursos para pesquisas sobre esses quadros, os tratamentos e programas de conscientização.

“Temos vítimas com sequelas físicas, neurológicas, que precisam de atendimento, de tratamento, que muito dificilmente terão como conseguir voltar para o mundo do trabalho. A família de uma pessoa que tem sequelas também sofre. Os danos emocionais são irreparáveis mas poderiam ser amenizados se tivéssemos o retorno financeiro para o atendimento. Ou que fosse revertido para o SUS, para as universidades, para ampliar estudos de vacinas. O valor que o governo pretende abrir mão pode ser irrisório diante da do tamanho do problema. Mas o estado tem de se comprometer mais”, segundo Rosângela. “E uma maioria na Assembleia Legislativa fecha os olhos para todas essas questões”.

Vítimas e familiares: desprezo à memória

A representante da Avico também faz uma avaliação ética e moral sobre o projeto de iniciativa do governo Tarcísio de Freitas. “Um ato de desprezo, de descuido, desatenção à memória das vítimas da covid. Essas autoridades tratam isso como passado em um país de memória curta”. E lembra que a abordagem à pandemia foi de desprezo desde o início, com o então presidente Bolsonaro e seu governo agindo de maneira negacionista.

“E hoje mesmo se fala pouco a respeito, as ações são acanhadas pelo tamanho da crise. São 700 mil vítimas fatais. Cada família perdeu mais de um ente querido. A gente fala de orfandade, crianças e adolescentes que ficaram sem pai e sem mães. E se nem isso for motivo para sensibilizar alguém, só podemos estar falando mesmo do desprezo que essas autoridades têm em relação à vida humana.”

A Avico é uma entidade de contestação, luta e de denúncia, que por meio do acesso ao Judiciário, pede reparação ao estado. Muitas ações são movidas de maneira voluntária por profissionais do direito. “Psicólogos, assistentes sociais e diversos outros especialistas também contribuem para as denúncias de um governo que usou da necropolítica, do descaso, do desrespeito. Que desprezou o sistema de saúde e usou um sistema logístico para atrapalhar o atendimento, haja vista o que aconteceu em Manaus, a não chegada de oxigênio e de medicamentos. Como Avico, tínhamos de fazer uma leitura da conjuntura, sofrendo como vítima, como familiar e defendendo com as forças que tínhamos as pessoas, garantir direitos humanos para atravessar o momento mais crítico”, lembrou.

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