direitos humanos

Governos tentam suprimir manifestações em todo o mundo, denunciam ativistas

Militantes mexicanos, egípcios, turcos, brasileiros e estadunidenses vêm Estados recrudescer na violência, independentemente da causa que mobiliza a população

Conectas

O estudante mexicano Gerardo Torres afirmou que o desaparecimento dos 43 estudantes foi uma ação do Estado

São Paulo – Mobilizações populares por causas diversas e com articulações descentralizadas estão preocupando os mais variados governos pelo mundo. E – sejam democracias consolidadas, incipientes ou ditaduras – suas respostas efetivas têm sido a violência e a restrição ao direito de manifestação. Essa foi a avaliação apresentada por ativistas e pesquisadores no 14º Colóquio de Direitos Humanos, iniciado hoje (25) na Praça das Artes, no centro de São Paulo, com organização da ONG Conectas Direitos Humanos.

“Estados diversos como Canadá, Egito, Estados Unidos, Quênia ou Argentina, com regimes políticos ou jurídicos totalmente diferentes, têm agido de forma semelhantes contra a tendência crescente de mobilizações sociais. Todos vêm as manifestações como ameaças”, afirmou o pesquisador da Iniciativa Egípcia de Direitos Humanos Karin Ennarah, autor de um relatório sobre a reação do Estados a mobilizações populares.

Para Ennarah, as respostas dos Estados variam somente entre a repressão policial simples, com uso de gás lacrimogêneo, até a criminalização, com leis que impedem as manifestações ou para dificultar que as pessoas se organizem. Também é  comum não haver responsabilização dos agentes policiais que praticam atos de violência. “Esses Estados vêm as mobilizações como algo, no máximo, tolerável. Em muitos casos, como algo a ser banido”, prosseguiu.

O pesquisador citou alguns exemplos de mobilizações espontâneas cuja reação dos Estados foi terrível. Uma delas foi se deu em Quebéc, em 2012. O governo aumentou as mensalidades das universidades e os alunos protestaram. A polícia reprimiu os estudantes e 2.300 foram presos. “Em vez de dialogar com os estudantes, o governo criou uma lei para colocar obstáculos burocráticos à organização de protestos. Um estudante fez uma declaração à imprensa criticando a lei e acabou preso”, relatou.

Para ele, é fundamental que comecem a ser estabelecidos tratados internacionais e regionais sobre o tema, para garantir o direito de livre manifestação dos povos. “E também sobre o uso das armas menos letais, que têm sido usadas de forma muito letal”, completou.

No entanto, em alguns casos os governos não têm se limitado ao uso de armas desse tipo. Gerardo Torres, estudante da Escola Rural Normal de Ayotzinapa, no Estado de Guerrero, México, onde 43 estudantes sofreram desaparecimento forçado em setembro do ano passado, destacou que essa ação foi patrocinada pelo Estado mexicano.

“Em 2011, nossa escola sofreu uma violenta repressão policial, com muito presos, torturados e dois mortos. Eu fui torturado para confessar que matei meus colegas. Esse é o nosso cotidiano”, afirmou. Torres ressaltou que as repressões foram se tornando cada vez mais violentas depois que os estudantes começaram a se organizar para contrapor as violações de direitos humanos do Estado mexicano, ao mesmo tempo em que buscava ampliar a capacidade de receber novos estudantes.

A coordenadora da área internacional da ONG Centro de Derechos Humanos de la Montaña, Maria Luísa Aguilar, avaliou que o país vive uma crise de direitos humanos. “Hoje, 60% da população vive na pobreza e temos uma situação de violência generalizada, sobretudo após o início da guerra ao tráfico e ao crime organizado. Há pelo menos 26 mil desaparecidos no México. E 98% dos crimes no país não são esclarecidos”.

Segundo Maria, logo que o atual presidente Peña Nieto foi eleito, em 2012, e propôs uma série de reformas, ocorreram muitas manifestações. Em resposta, o governo conseguiu aprovar leis que permitem cortar as comunicações em qualquer local que tenha mobilização e também pedir a identificação dos telefones de quem esteve nos protestos. “Desde o início das mobilizações só temos encontrado violência como resposta. Desaparecimento, tortura, assassinatos”, completou.

Nos Estados Unidos, onde têm ocorrido fortes mobilizações por conta da violência policial contra jovens negros, o militante Matter Phillip Agnew, do recém-criado movimento Black Lives, ressaltou que a situação do país é semelhante à brasileira: Todo ano centenas são mortos pelas forças de segurança. Mas em 25 anos nunca levamos um policial a julgamento por isso. Porém, se eu matar alguém, irei logo para a cadeia, sob risco de pena de morte”.

Segundo Agnew, a violência da polícia só tem aumentado e alimentado a revolta da população que cada vez vai às ruas com mais raiva. “O governo, no entanto, só responde com prisões, bombas, jatos d’água e violência às nossas marchas”, disse ele, que avalia como positivas as manifestações públicas do presidente Barack Obama. “Mas só isso não resolve”, completou.

Apesar de as mobilizações terem como estopim a violência policial, o ativista defendeu que o povo negro dos Estados Unidos está reagindo contra todo o sistema político. “Considerando a história do nosso país, onde os negros sempre foram tratados como secundários, a revolta surge como resposta à exploração, à violência, à segregação. Estamos em uma batalha contra o Estado.”

Dentro dessa batalha, Agnew inclui a imprensa. Eles lembrou do caso do jovem negro Trayvon Martin, morto pelo vigilante comunitário George Zimmerman, em 2012, no estado americano da Flórida. “A nossa mídia é determinada pelo governo. No caso Trayvon, tentaram desumanizá-lo. Sempre ressaltavam que ele fumava maconha, ouvia música alta, era maltrapilho. Tentaram justificar o assassinato dele”, afirmou.

Ativista e criador do coletivo de mídia Fluxo, Bruno Torturra defendeu que o maior problema é que o Estado e a imprensa não conseguem compreender essa nova forma de mobilização. “Não é mais o sindicato, o partido ou determinado movimento que articula, são as pessoas. E desperta atenção a resposta violenta do Estado ao lidar com a população que se manifesta”, disse.

Para Torturra , embora as mobilizações se iniciem sob temas específicos – como o aumento da tarifa, a mobilização por um parque ou na revolta pelo assassinato de um jovem – o questionamento principal se direciona ao sistema de governança representativa.

“Hoje se está em busca de um novo modelo democrático que nem sequer existe teoricamente. E isso é o que torna difícil dar respostas. A democracia do século 20 não serve ao século 21. E os direitos humanos são o solo sobre o qual a nova democracia deve ser erguida”, defendeu Torturra.

Referência dessa demanda é a história relatada por Nurcan Kaya, ativista turca participante das mobilizações em defesa do Gezi Park, uma das poucas áreas verdes ainda existentes na cidade de Istambul, capital da Turquia. Em 2013, o governo turco autorizou a construção de um shopping no local e revoltou a população.

“Nós não queríamos, mas o governo se negou a ouvir a população. Entramos na Justiça, mas antes de obter uma resposta mandaram tratores para cortar as árvores. Algumas pessoas se mobilizaram e ocuparam o local para impedir”, contou Nurcan.

Com a divulgação nas redes sociais, foi chegando mais gente a cada dia. E a polícia local usava mais violência para arrancar as pessoas de lá. “Usavam muito spray de pimenta – comprado do Brasil – e bombas de gás lacrimogêneo. Mas quanto mais violência a polícia empregava, mais gente ia para a praça”, relatou a ativista.

Em 31 de maio a polícia reprimiu violentamente uma grande mobilização que tomou a ponte que corta o estreito de Bósforo, ligando os lados ocidental e oriental de Istambul. “No dia seguinte houve manifestações em 79 das 81 províncias turcas. Uma verdadeira guerra em todo o país”, afirmou Nurcan. “O partido governante está há três mandatos no poder e vem se tornando cada vez mais intolerante. O premiê nos insultava, diziam que éramos bêbados, drogados, maltrapilhos”, completou.

A polícia local, que gasta cerca de 150 mil bombas de efeito moral no país por ano, consumiu 180 mil delas em 20 dias de mobilizações, segundo a ativista. O saldo final foi de oito mortos e 8 mil feridos, 61 em condições graves. Outras 4.900 pessoas foram detidas, entre elas 49 advogados e 39 jornalistas.

“A manifestação explodiu por conta do parque, mas era também uma forma de protestar contra a violência policial, a falta de democracia, de participação. Não havia líderes. Eram ativistas sociais, culturais, partidos políticos, ambientalistas. O povo”, concluiu.